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Coluna

Quem autoriza o aborto no Brasil?

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Mesmo nos casos e países em que o aborto legal está previso em lei, entraves no sistema de saúde e instituições dificultam o acesso ao procedimento - Agência Brasil
Precisamos urgentemente tirar o aborto do campo de uma política criminal para o da saúde pública.

[Audiodescrição: Em fotografia aparece um aglomerado de mulheres ocupando as ruas. Algumas centralizadas seguram uma faixa preta com letras pintadas na cor branca onde está escrito: na América latina um só grito: aborto legal, seguro e gratuito já! É para vida das mulheres! Fim da descrição.]

Recentemente uma criança de onze anos engravidou após ser estuprada. Como se não bastasse este fato brutal, infelizmente foi o início de mais uma série violenta que sofreu esta VIDA,  a qual ninguém resguardou. Foi ela negligenciada pelos setores da saúde, quando negaram realizar o procedimento de aborto, mesmo que amparado por lei, agredida pelo executivo, através das declarações de brutalidade do atual presente Jair Bolsonaro  e, como se ainda existisse espaço para mais dor, torturada pela batalha que seguiu no judiciário, o qual autoriza há anos “um operador do direito” – quase sempre no masculino - representar os interesses específicos de uma determinada comunidade, através da sua ideia odiosa de moral.

O judiciário, há anos, vem se colocando no papel de guardião da razão pública, através da sua linguagem e espaços pouco representativos no que tange a estrutura social. Longe de garantir a manutenção de uma sociedade democrática consubstanciada na pluralidade de gente e cultura, ele segue, historicamente, sendo estreito em seus interesses morais, constituídos através de uma elite reducionista com cacofonia conservadora, branca e majoritariamente masculina. 

Exemplo disso pode ser citado no discurso do Ministro Cezar Peluso no ano de 2004, ao tentar cassar a liminar que autorizava mulheres interromperem a gravidez no caso de anencefalia. Cumprindo o seu dever com maestria na “Suprema Corte” ele defende o direito à vida (de quem?): 

“[...] A integridade física e biológica da vida intra-uterina também está em jogo. Depois, o sofrimento em si não é alguma coisa que degrade a dignidade humana; é elemento inerente à vida humana. O remorso também é forma de sofrimento [...] Nem quero discorrer sobre o aspecto moral e ético – não me interessa – de como o sofrimento pode, em certas circunstâncias, até engrandecer pessoas [...]”.

Passada a indignação da leitura, acredito que não há como encontrar coerência nesse argumento, pois no campo dessa dita moral, o ódio e a brutalidade expressos nesse texto não têm a mínima intenção de qualquer tipo de coerência.

Mas vamos aos fatos: no Brasil, o aborto é crime listado no Código Penal como infanticídio, exceto autorização no caso de estupro através do consentimento da gestante, ou representante legal se esta for incapaz, ou como o próprio código expressa “alienada ou débil mental”. Há também autorização em jurisprudência, no caso do feto não apresentar calota craniana, isto é, ser anencefálico. 

Vale ressaltar que um dos principais argumentos a favor da criminalização do aborto é a eugenia em relação à vida das pessoas com deficiência, no entanto, essa mulheres continuam tendo a decisão sobre os seus corpos constantemente usurpadas, inclusive ao direito de gestar, visto o alto índice de denúncias – não catalogadas – acerca da esterilização involuntária de mulheres com deficiências, autorizadas e decididas pelos mesmos responsáveis que as violentam e argumentam a favor da vida, mas que retiram a autonomia dessas mulheres decidirem sobre o próprio corpo, com base no argumento de que podem gerar outras vidas deficientes. Um contrassenso.  

Além disso, é irônico e covarde que em um país onde as pessoas com deficiência intelectual –as quais o Código Penal vai chamá-las de débil -, sejam três vezes mais violentadas dentro de casa, pelos seus “representantes legais”, autorize aos mesmos a “liberdade” alimentada pelo combustível da moral de cometer outras violências aquém das já apontadas, tendo como argumento que a deficiência elimina a capacidade dessas mulheres serem donas da sua própria existência e que tenham direito de serem tratadas como vítimas. 

Além disso (porém não dissociado), o aborto é um tema da vida da mulher, de todas. Em pesquisa realizada pela Antropóloga Débora Diniz, que vem há anos colocando a temática em discussão, “o número de abortos é, seguramente, superior ao número de mulheres que fizeram aborto [...] Em termos simples, isso significa que, ao final de sua vida reprodutiva, mais de um quinto das mulheres no Brasil urbano fez aborto”.

Por isso, podemos considerar este um fenômeno comum e com consequências de saúde, as quais deveriam ser vistas como prioridade nas discussões e agendas públicas em nosso país. Entretanto, essa necessidade é tomada pela criminalização da temática sob argumento de priorização da vida. O que deixa mais claro que os “operadores” (ou não) quando falam sobre vida, não estão trazendo ao destaque a vida das mulheres, mas sim o controle extremo sobre os nossos corpos, o qual tem um direcionamento muito claro, pois ao controlar o aborto, eles controlam as mulheres e, a partir disso, é ordenada a reprodução social da vida. Isso implica na construção do significado social do trabalho e na falta de ética e discussão acerca das práticas de cuidado, diante da naturalização de que a vida da mulher pouco vale e que seu sofrimento a dignifica. 

A questão é que quando o aborto é criminalizado, não há uma diminuição nesses números. As mulheres não deixam de abortar, mas muitas, em sua maioria pretas e vulneráveis, morrem pela falta de um atendimento adequado. Precisamos urgentemente tirar o aborto do campo de uma política criminal para o da saúde pública. Essa pauta precisa ser considerada uma pauta de todos nós, em solidariedade, visto que existe um ciclo patriarcal infindável que está pronto para justificar a morte das mulheres pelo seu próprio corpo. Somos vítimas do nosso próprio existir pelo corpo que temos. 

O que o Brasil precisa criminalizar é a violência contra mulher. Débora Diniz em entrevista a um jornal televisionado disse:  “se as dores do mundo fossem de todos nós, certamente a gente teria uma sociedade mais solidária e injustiça social seria um problema de todos” e acrescentou ao final: “Em matéria do aborto, eu terminaria dizendo que a principal lição para os homens é entender que a decisão do aborto é das mulheres. Aos homens cabe, estar ao lado delas, mas que essa é uma decisão delas e, que cabe a eles cuidar delas”.

Por trás do discurso da vida, nós temos as consideradas “subvidas” por serem esquecidas e pouco importantes, nós temos histórias de uma rede de mulheres segurando a existência uma das outras, tentando sobreviver às violências da misoginia. Quando uma mulher aborta quem morre é ela; ou por uma dor profunda e subjetiva ou são mortas literalmente. Aos homens como os representantes do judiciário ou da vida comum, os quais endossam o discurso da razão pública e moralidade da vida, cabe abandonar, julgar, notificar, calar e executar, em favor da manutenção da norma que autoriza a continuação dessa barbárie. 

A descriminalização do aborto é pela vida das mulheres!

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Elen Carvalho