Rio Grande do Sul

INFÂNCIA

Artigo | A banalização da exploração das crianças nas redes sociais

“O que provoca mal-estar é a forma como se consome tudo o que é servido nas redes sociais sem questionar”

Brasil de Fato | Londres |
"Não existe lei específica a respeito da publicação de posts, fotos, vídeos envolvendo crianças na internet ou que regulamente o que pode ou não ser publicado", afirma a jornalista Rejane Boeira - Foto: Bigstock

“O que você quer ser quando crescer?” 

“Eu queria ser ‘periguete’, mas minha mãe não deixa, então eu quero ser rica, que é a única coisa que ela deixa eu ser”. 

Esse pequeno diálogo foi postado em um vídeo no Instagram, numa interação entre mãe e filha. A menina em questão tem apenas 6 anos de idade e já está sendo considerada uma sensação nas redes sociais, com mais de 4 milhões de seguidores. 

Após aparecer no canal de outro influencer (adulto) que também tem seus milhões de seguidores, a tal menina estourou nas redes e virou sucesso. Possui seu próprio canal no Youtube, e uma lista de reels, posts e stories invejável, onde dança (funk e outras danças sensuais), faz piadas, dá tutorial de maquiagem, e usa um linguajar imitando uma pessoa de pelo menos o dobro de sua idade. 

É motivo suficiente para impressionar? Sem dúvida é, pois evidencia a desenvoltura da menina ainda em fase de alfabetização. Haja vista o grande número de seguidores. Mas, ao mesmo tempo em que sua inteligência e naturalidade nas tiradas bem-humoradas chamam a atenção, o que mais assusta é perceber a reação do seu público consumidor. É impressionante como a sexualização e adultização de uma criança que mal consegue se vestir sozinha virou uma coisa banal e facilmente absorvida pelos ávidos seguidores, que não pensam duas vezes antes de curtir e compartilhar o que deveria ser banido, antes de qualquer coisa.   

Da forma em que vivemos hoje, com a necessidade aparente de sentir-se incluso, de estar “por dentro” do que se passa no mundo virtual, e com o crescimento dos chamados “influencers”, basta jogar algo na rede que chame a atenção para que os seguidores apareçam aos borbotões. A descoberta desse nicho de mercado aliado à facilidade de usar uma criança inocente para gerar mais uma renda – por vezes a única da família – criou um movimento que se expande a uma velocidade estonteante, com os olhos firmemente fixados na monetização que o mercado das redes sociais tem proporcionado. 

Os chamados “kidfluencers”, ou influenciadores mirins, aparecem aos milhares na internet, e muitos ganham dinheiro por meio de patrocínios em parcerias com marcas de roupas e outros produtos. E assim todos ganham. Quanto mais seguidores, mais chances de vitrine, e consequentemente aumento nas vendas. O conteúdo é principalmente destinado a outras crianças e, como a idade mínima para se ter uma conta no Instagram ou para a criação de um canal no Youtube é de 13 anos, muitas dessas contas são gerenciadas pelos pais.  

O exemplo citado acima se trata de um caso em que obviamente a exploração infantil ultrapassou os limites do tolerável, a meu ver. Deixa de se fazer a distinção de idade ou maturidade emocional do interlocutor: criança, jovem, adulto são todos nivelados sob o mesmo parâmetro. Assistir uma criança rebolar como um adulto, usar maquiagem e dizer que tudo o que mais quer é ser “rico”, e ainda corroborar isso achando “engraçadinho”, mostra que a sociedade vem pecando em duas frentes: na capacidade de percepção e na falha em proteger suas crianças dos perigos que tais comportamentos podem acarretar para estes futuros adultos. 

De outro lado, não existe lei específica a respeito da publicação de posts, fotos, vídeos envolvendo crianças na internet ou que regulamente o que pode ou não ser publicado. Tirando os casos extremos de uso indevido de crianças ligados ao sexo, – pedofilia e pornografia infantil - nada impede que se crie conteúdos infantis em canais e contas nas mídias sociais.  

Existe de tudo em termos de influenciadores mirins: desde os que chamam a atenção por conseguirem falar palavras difíceis aos que simplesmente são usados como pôsteres para atraírem seguidores por sua beleza inocente. Todos, é claro alavancando não menos seguidores no Instagram, e em plataformas como Youtube e TikTok. 

A diferença entre esses e os que vão além na exploração talvez esteja no conteúdo produzido, mas que para mim não deixa de ser menos perigoso, uma vez que por trás de tais estrelas mirins, há sempre um adulto como uma intenção e agenda, seja a necessidade de mostrar e receber apreciação, ou com vistas a monetizar nesse mercado em ascensão. 

Há quem diga que vivemos numa era em que não há como escapar dessa tendência, uma vez que as crianças já nascem inseridas no mundo tecnológico. E, portanto, essa é a nova ordem do mundo. Desde que entramos na era da informática, há pouco mais de 30 anos, tudo está cada vez mais interconectado e interligado via rede mundial de computadores. Hoje, não somos nada sem a internet, precisamos dela para sobreviver, para trabalhar, para nos informar, para comunicar, para viver, enfim. Isso faz parte de nossas vidas assim como respirar é vital. 

A questão aqui não é por um fim nesse futuro nem mudar o curso da evolução, e talvez seja um pouco tarde para reprogramar a ideia de como usamos a internet. Tudo se vive virtualmente em tempo real, onde relações são forjadas ou desfeitas via aplicativos, e tudo está à mostra e à venda, desde que haja um número considerável de interessados em consumir. 

Entretanto, o que provoca mal-estar é a forma como se consome tudo o que é servido no mundo das redes sociais sem questionar. O que faz suar frio e provoca dor de estomago por vezes é constatar a passividade diante desse novo modelo, do que é okay aceitar ou não, do que ultrapassa as barreiras do aceitável ou até onde se pode ir, quando nos deparamos com aberrações que saltam aos olhos. 

Quando a sociedade aceita uma criança sendo incentivada a se comportar com um adulto na internet, e ainda bate palmas, só faz nos mostrar que ou perdemos nossa capacidade de avaliar ou pior que isso: nos tornamos compatíveis com um modelo decadente, enganoso e destrutivo. Acaba-se por servir o propósito dos que estão interessados no produto, nos resultados, nas vantagens e lucros que possam obter. Mas, certamente não serve aqueles que insistem em acreditar no potencial evolutivo inteligente do ser humano. Mas, talvez esses estejam na contramão da modernidade.  

Se esta é a nova ordem das coisas e não temos como desviar o caminho da roda da evolução, podemos sim tentar ser menos participativos e corroborativos de tais tendências de comportamento.  Portanto, se ao navegar na rede, aquela carinha inocente aparecer dizendo que tudo o que mais quer é possuir uma conta bancária cheia de dinheiro, resta duas opções: ou você se torna mais um de seus seguidores com emojii de palminhas e coraçãozinho, ou você desconecta da rede social e vai procurar algo melhor para fazer com o seu tempo. Afinal, sem plateia não há show.  

* Rejane Boeira é jornalista e tradutora freelance. 

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko