Pernambuco

ENTREVISTA

"O rap mais bonito que tem no Brasil hoje é no Nordeste", afirma a multiartista Bixarte

A multiartista fala sobre a sua trajetória, seu álbum "Nova Era" e o que representa ser travesti e nordestina nas artes

Brasil de Fato | Recife (PE) |
A multiartista Bianca Manicongo acredita que a sua arte está associada à sua identidade - Luigi Apolinário/Divulgação

Bianca Manicongo, também conhecida como Bixarte, é uma poetisa, atriz, escritora e rapper que tem deixado sua marca através das suas palavras carregadas da sua identidade trans, negra e nordestina. Bianca é paraibana e uma personalidade muito expressiva da cena artística e jovem do estado.

Aos 21 anos, a multiartista Bianca vem fazendo uma transição do rap e da poesia para a cena pop. Para falar sobre esse e outros assuntos, o Brasil de Fato Pernambuco entrevistou a Bixarte para o programa Trilhas do Nordeste. Confira:

Brasil de Fato Pernambuco: Bianca, a gente te conhece também como Bixarte, que é uma persona artística sua. Quando Bixarte nasce para você e quando Bixarte nasceu para esse mundo artístico?

Bianca Manicongo (Bixarte): Eu lembro que eu fui para o Slam Brasil, em 2018, que é o Campeonato Nacional de Poesia Falada. E eu fui ainda com o nome antigo, com o rosto antigo, com o corpo antigo, e eu não passei da primeira fase e isso me assustava bastante; porque eu já gostava de fazer poesia, mas eu entendi que não tinha como eu ganhar nada com aquele corpo, com aquele nome que não era meu. Então, eu perdi na primeira fase, voltei pra João Pessoa e voltei com a ciência de que eu não era homem e que nenhum tipo de trabalho, nenhum tipo de arte que eu quisesse fazer, eu iria fazer enquanto homem. 

Então, eu lembro que eu andava na rua e eu era sempre chamada de bicha e eu sempre fiz arte desde os meus oito anos de idade. Então, foi uma forma de eu juntar "bicha" e "arte" para eu poder falar com meus pais; inclusive sobre a minha travestilidade, sobre a minha transição. A arte possibilitou que eu chegasse para a minha mãe e dissesse "sou mulher". Então, eu acho que o momento em que Bixarte nasce para mim é aos 21 anos, desde que eu estava lá no útero da minha mãe eu já entendia que eu era uma travesti. Eu fui criada enquanto homem, mas sempre sendo uma travesti. E eu chego para minha mãe na hora certa, eu acredito. Com 19 anos de idade, eu consigo conversar com ela sobre a minha transição e sobre a urgência de ser aceita, porque eles me matavam e eu não queria morrer sem ter o abraço da minha mãe. Foi bem assim nossa conversa, e nesse processo que eu consegui externalizar Bixarte também.

Leia: Bixarte: As diversas faces de uma trans não binária dentro do Rap
 
Brasil de Fato PE: Por trás da Bixarte, tem uma travesti preta. A arte é o teu lugar de se expressar dessa maneira? Como tem sido esse lugar para ti?

Bianca Manicongo (Bixarte): Ser mulher no Brasil é a gente estar brincando de roleta russa com o estado. Ser mulher no Brasil é a gente ser violentada no parto. Ser mulher no Brasil é a gente sofrer violência doméstica. É a gente receber menos, é não estar nas lives dos festivais, é ser um país que mais mata mulheres do mundo e que mais consome pornografia trans também. Então, acaba que eu ando com muito medo, as mulheres andam sempre com muito medo, porque nós somos o alvo da caça, do Estado principalmente. 

Então, eu encontro na arte a possibilidade de ser, a possibilidade de estar, de fazer o agora, mas sem medo. Eu encontro na arte a possibilidade, inclusive, de falar para os meus pais que eles podem ter outra filha travestir, que isso jamais vai ser um problema, porque nós não somos um problema. 

Encontrar na arte a possibilidade de se expressar é ter um cano de escape para poder ficar viva, é ter um fôlego reserva, porque a gente não consegue só ficar militando, militando. Dizendo por que isso é machismo, dizendo por que isso é racismo. A gente cansa, a gente, às vezes, só quer ouvir uma Linn da Quebrada e tomar um bom vinho, porque a gente tem artista na música, artistas trans na música. Então, as vezes é só isso que a gente quer, sabe?

Brasil de Fato PE: A tua trajetória tem muito do rap e da poesia de rua, mas o Nordeste não é uma região muito reconhecida por isso. Para você ser nordestina é uma potencialidade ou muitas vezes significou uma dificuldade? 

Bianca Manicongo (Bixarte): Sem dúvidas uma potencialidade, porque o rap mais bonito que tem no Brasil hoje é no Nordeste. Isso eu falo sem medo nenhum. A gente fala de repentistas e rappers nordestinos e a gente fala de Bione, a gente fala de Margot, Rapadura, a gente fala de uma série de artistas rappers nordestinos e que revolucionaram o hip-hop e que tem revolucionado sua geração. Para mim, ser uma artista nordestina é sempre muito privilégio, porque a gente tem um “flow” diferente, um sotaque diferente, uma criança diferente. O Nordeste é um berço criativo enorme. 

Quantos artistas nós temos? O que é original do Nordeste? Claro que a gente entende que o que atrapalha é toda essa xenofobia. Por exemplo, eu fui fazer um teste para um filme há pouco tempo e eu tinha que ter um sotaque neutro para poder falar. E meu sotaque é nordestino, ele não é neutro. Não preciso ter esse sotaque que eles dizem ser neutro. Então essas são as dificuldades, o que a gente já encontra no dia a dia. Mas ser uma travesti cantora do Nordeste para mim significa que a gente está no caminho certo e que a gente tem uma legião de artista trans e cis também, mas do Nordeste, que fazem um trabalho muito original.

Brasil de Fato PE: Indo um pouco para a tua música, eu lembro de “Oxum”, uma música que tem uma série que você intitula como "Nova Era". O que é essa Nova Era? Pode explicar para a gente? 

Bianca Manicongo (Bixarte): A Nova Era é meu último projeto visual, é um EP visual, são quatro clipes em que eu produzi inteiramente com uma equipe LGBTI preta, mais de 30 pessoas pretas contratadas, e a gente fez um trabalho excelente dentro do interior da Paraíba. A gente foi para Barra de Mamanguape, a gente gravou em uma comunidade lá do Castelo Branco, em João Pessoa. Então, lugares muito estratégicos apagados também pela história do meu estado. E juntando essas potências todas para poder produzir. Então a direção é de uma travesti, o roteiro é de uma travesti, a roupa é de uma travesti, a música é de uma travesti. A gente foi encontrando esses corpos que estão à margem e colocando dentro da equipe. 

Enquanto projeto, é isso. Enquanto arte, é um dos projetos em que eu estou mais realizada porque eu faço quatro clipes e nos quatro eu também assino a direção, e eu consegui identificar como a gente consegue fazer quando tem dinheiro. Eu ganhei 20 mil reais na Lei Aldir Blanc e com esses 20 mil reais eu fiz quatro clipes, e quatro clipes muito fodas. Quando a gente tem acesso à grana, a gente percebe que tem a organicidade de fazer. A dificuldade é acessar esses espaços e outros lugares com grana. Mas a "Nova Era" é um projeto incrível, foi meu último projeto e eu vou lançar já o meu próximo álbum e é um projeto que eu tenho muito orgulho. É um filho que eu coloquei no mundo e já tem mais de 400 mil plays casados. Então, eu estou super feliz.

Leia: Cantora Bixarte lança o último single e clipe do projeto “A Nova Era”

Brasil de Fato PE: Bianca, quem te acompanha percebe que você está fazendo uma transição mais para o pop. O que você pretende trazer para essa outra cena? Você acabou de falar que está um outro álbum. 

Bianca Manicongo (Bixarte): O rap e o hip-hop não saem da minha vida nunca, porque se eu estou viva hoje é por causa do rap. A diferença é que eu gosto muito de ritmos, eu sempre fui uma mulher que amei ritmos latinos, eu amo ritmos. Batuques, eu gosto muito de dançar, gosto de ir para a festa para dançar e a minha música, por mais que seja dançante, ela fala muito da religião. Ela fala muito da fé, do estar tentando ficar viva. Nesse álbum novo eu trago uma outra proposta, é um álbum de rap que tem muito rapzão, mas também é um álbum pop. A gente tem uma música que é muito próxima aos paredões do Pará e essa música é com a Gurias, que é de São Paulo. Então a gente pega o ritmo do Nordeste que é nosso e mistura com o pop e chama a Gurias que é uma paulista. Na verdade, eu acho que ela é de Minas Gerais, se chama Gurias porque é de Minas Gerais, e a gente faz uma coisa bem diferente. É um álbum que eu estou mesclando e ousando, é um álbum que tem muitas participações especiais da Drika Barbosa, da Gurias, Bia Ferreira, a FúriNegra, Wnits, Juliano, tem uma série de artistas que admiro. Então está bem especial, é um álbum para dançar com a mão na cabeça. 

Brasil de Fato PE: Bianca, se fosse para alguém hoje que estivesse conhecendo teu trabalho aqui na entrevista para escutar uma música tua, qual seria? 

Bianca Manicongo (Bixarte): Olha, eu pediria muito para essa pessoa escutar " Àrólé". " Àrólé” é uma música da "Nova Era", terceiro single da "Nova Era", e é uma música que fala muito comigo, que fala sobre a gente deixar que as flechas sejam jogadas em direção aos nossos sonhos. Acho que a todo momento a gente precisa de força para continuar. 
 

Edição: Elen Carvalho