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Caso Miguel: Após prisão de condenada ser negada, Mirtes diz que justiça "vem protegendo Sarí"

Justiça nega pela segunda vez medidas cautelares contra Sarí Corte Real, condenada pela morte de Miguel, de 5 anos

Brasil de Fato | Recife (PE) |
“Bem difícil lidar com isso. Não só com a perda do meu filho, mas com a forma com que o judiciário tem tratado o caso", afirma Mirtes Renata, a mãe de Miguel - Lucila Bezerra/Brasil de Fato Pernambuco

Decepção é o sentimento que refere Mirtes Renata Santana de Souza frente à condução pelo judiciário do caso de Miguel, seu filho que, em 2 de junho de 2020, morreu aos 5 anos ao cair de um edifício de luxo do Recife quando estava sob tutela da ex-patroa Sarí Mariana Costa Gaspar Corte Real

Nessa segunda-feira (25), a Justiça publicou a decisão em que nega, pela segunda vez, o pedido de prisão preventiva e de retenção de passaporte contra Sarí, condenada a 8 anos e 6 meses de prisão por abandono de incapaz com resultado de morte. 

No seu último dia de vida, Miguel Otávio Santana da Silva estava acompanhando o expediente da mãe como empregada da família de Sarí no edifício de luxo Píer Maurício de Nassau, um dos arranha-céus do condomínio conhecido como Torres Gêmeas, na área central da capital pernambucana. 

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Mirtes havia saído para passear com o cachorro da família para quem trabalhava e o menino ficou com Sarí, que estava fazendo as unhas com uma manicure dentro do apartamento. Câmeras do circuito interno de segurança do condomínio mostram o momento em que a criança saiu de casa e entrou no elevador à procura de sua mãe. A acusada, então, apertou o botão do 12° andar e o enviou para a morte. Completamente sozinho, Miguel caiu da grade do corredor do nono andar, onde o elevador parou.

Sarí, que é ex-primeira dama de Tamandaré, no Litoral Sul de Pernambuco, foi presa em flagrante no dia do crime, mas logo foi liberada após ter pagado uma fiança de R$ 20 mil.

Enlutada mas perseverante na luta por justiça, Mirtes Renata questiona o comportamento do judiciário. “Querendo ou não, [ele] vem protegendo Sarí Corte Real. Não é de agora, desde o começo a gente vem apontando irregularidades”, denuncia.


Miguel tinha 5 anos quando a ex-patroa da sua mãe o colocou para subir desacompanhado em elevador e ele caiu do alto de prédio de luxo do Recife / Reprodução

“Está sendo bem difícil lidar com tudo isso. Não só com a perda do meu filho, mas lidar com a forma com que o judiciário tem tratado o caso de Miguel. É bem doloroso. Só pedindo a Deus muita força para seguir, porque não está sendo fácil, não”, desabafa.

Mirtes, sua família, advogados e movimentos populares veem vícios durante todo o andamento do processo. As anomalias vão desde testemunhas da defesa de Sarí que foram ouvidas em sigilo (a despeito do processo não estar em segredo de justiça) a depoimentos mentirosos, como o de um psicólogo que disse ter acompanhado Miguel mas não soube dizer o endereço da clínica, e de uma mulher que alegou ter presenciado o garoto ser vítima de agressões racistas de Mirtes e sua avó, e depois admitiu que só “tinha ouvido falar disso”. 

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“Vêm acontecendo essas coisas e não há uma devida punição. Agora sai essa sentença, contaminada, onde o juiz não condena só Sarí como condena eu e minha mãe, quando abre investigação de maus tratos. O caso de Miguel é todo envolvido no racismo institucional e estrutural, e só se usa racismo uma vez [no processo], contra mim e minha mãe. E vem muito explícito para a sociedade o racismo que vem acontecido com Miguel”, comenta.

Entenda a última decisão da Justiça

O primeiro pedido de tomada de medidas cautelares contra Sarí foi protocolado no fim de maio deste ano, logo após sair a sentença de condenação, conta a advogada Maria Clara D’ávila, do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop). No entanto, o juiz negou dizendo que não havia motivos para decretar tais medidas. 

Um novo requerimento foi instaurado no início deste mês de julho, agora com a justificativa de que um oficial de justiça não conseguiu intimar Sarí a comparecer à audiência de um segundo processo - dessa vez de natureza cível que busca indenização - por não localizá-la na residência das Torres Gêmeas. De acordo com a advogada, quando ele chegou no endereço que constava nos autos, o porteiro teria informado que ela já não morava lá há mais de um ano. 

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“No início do processo ela pagou a fiança para não manter prisão preventiva, e um dos requisitos era que ela não mudasse de endereço sem avisar [ao juíz]. É uma quebra de fiança”, avaliou D’Ávila, que viu nisso um “risco à continuidade do processo”.

O principal, disse, não seria necessariamente a prisão preventiva de Sarí, mas a aprovação de outra medida cautelar, a exemplo da retenção dos passaportes, para que ela não 'fuja'. 


Sari Corte Real foi presa em flagrante no dia do crime, mas logo foi liberada após ter pagado uma fiança de R$ 20 mil. / Reprodução

Os dois requerimentos foram encaminhados ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que é quem faz o trabalho da acusação, e, em seguida, foram para a apreciação da 1ª Vara dos Crimes Contra Criança e Adolescente da Capital. Ambos os órgãos vetaram os pedidos. 

Na sua última decisão, proferida no último dia 19 e publicada no Diário Oficial nessa segunda, o juiz auxiliar Edmilson Cruz Júnior corroborou a decisão do MPPE e manteve a primeira negativa do requerimento de abril, “considerando que se mantém inalterada a fundamentação exposta na decisão retro e ante a inexistência neste processo de fato novo que justifique reavaliar a citada decisão”.

Para a advogada D’Ávila, causa estranheza a atitude do MPPE, que é quem deveria defender os interesses das vítimas. “Não é o que costumamos ver no Ministério Público com outros tipos de réus, mesmo se tratando de um crime de natureza grave, o assassinato de uma criança, um abandono de incapaz”, pontuou. 

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É bem verdade que todas as pessoas processadas criminalmente têm direito à presunção da inocência até que se chegue ao “trânsito em julgado” e, portanto, a responder pelas acusações em liberdade. Mas, como a advogada pontua, não é assim que a Justiça opera para todos. “Infelizmente no nosso País [esse] é um direito que é negado à maior parte da população, de outro perfil. Cerca de 40% dos presos [do Brasil] são presos provisórios [que são presos antes de serem julgados]. Por mais que seja direito, para Sarí foi um privilégio, porque ‘só’ para ela foi garantido”, analisou.

Representando a defesa de Sarí Corte Real, o advogado Pedro Avelino frisou a diferença de que os pedidos de medidas cautelares não vieram do titular da acusação - ou seja, do Ministério Público -, mas sim da assistente de acusação. 

Ele ainda classificou a ação dos advogados de Mirtes como uma “insistência sem respaldo”, de “má fé ou fruto de ignorância”, e refutou a justificativa do requerimento.

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“No processo criminal, ela tem dois endereços informados: um no Recife e outro em Tamandaré. Isso não caracteriza quebra de fiança. A pior parte do pedido é que, no processo civil, só consta o endereço de Tamandaré, onde ninguém foi. Não se sabe o porquê”, argumentou.

 “A decisão do juiz não poderia ser diferente, porque Sarí respondeu ao processo todo em liberdade. Não há razão para decretar prisão porque ainda tem muito processo”, defendeu.

Sobre a afirmação de Avelino, D’Ávila se manifestou que: “o endereço informado na Nota de Culpa, que é o que consta no processo, é o das Torres Gêmeas.”

Após sua condenação, Sarí entrou com recurso contra a sentença de 8 anos e 6 meses. Mirtes também deverá recorrer da ação da acusada, informou D’Ávila, de modo que o processo deverá chegar à segunda instância.

Edição: Vanessa Gonzaga