Pernambuco

Coluna

Sonhar bem mais que o bastante

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Fillipe Costa é brasiliense, produtor cultural, artista de rap, pessoa com deficiência e ativista pelas lutas coletivas - Divulgação
A música me tirou de uma situação muito ruim

[Audiodescrição: Em fotografia no palco som da rural do Festival de Inverno de Garanhuns, em iluminação destacada aparece FIllipe Costa. Ele está de perfil, em pé segurando o microfone e muletas. FIllipe é um homem preto, com deficiência física. Está de boné, calça e casaco preto. Ao fundo uma mesa de som com dj. Fim da descrição.]

Em julho, na cidade de Garanhuns, agreste de Pernambuco, aconteceu a 30º edição do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG). Na ocasião, conheci o trabalho de Fillipe Costa. Brasiliense, produtor cultural, artista de rap, pessoa com deficiência e ativista pelas lutas coletivas que combatem as injustiças sociais. Ele compareceu ao FIG para apresentar-se no Som da Rural e tirou um tempo para bater um papo conosco da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE). 

Resolvi dedicar a coluna desta quinzena para compartilhar sua história e trabalho. Fillipe nos conta: 

“Eu era uma criança de 10 (dez) anos e estava em um ensaio de quadrilha, quando um carro desgovernado entrou em velocidade no ambiente e me arrastou por alguns metros. Fiquei com várias lesões, o que ocasionou posteriormente na amputação da minha perna e passei a ter a condição de pessoa com deficiência. Depois disso, não quis sair de casa por um ano, porque acabei ficando em profunda tristeza, depressão. 

Antes do acidente, eu tinha contato com a música nos bairros em que morei em Brasília, então, eu ouvia os flashback e, especialmente, o rap. Ouvia muita música, porque em Brasília eles fechavam as ruas no final de semana para a criançada brincar, dançar, etc. Mas aí, depois que eu sofri o acidente, eu fiquei sem sair de casa, como eu disse. 

Em um desses dias, do nada, comecei a escutar um som de rap que estava na quadra próxima a minha rua, porque alguém resolveu fazer uma “rua de lazer” lá [...] Eu, dentro de casa, escutei esse som e comecei a lembrar do quanto eu gostava e ouvia antes de ter amputado a perna e isso foi criando aquele bichinho dentro de mim que dizia assim: caramba, tá rolando aquele som ali, coisa que eu gosto, ainda gosto! 

Eu pedi para o meu irmão me levar lá e falei com os meninos da rua para saber se eles iam, ou se já tinham ido. Meu irmão até estranhou porque tinha um ano que eu não saia de casa! Chegando lá, os meus amigos me recepcionaram super bem e tal. Foi aí que a minha relação com a deficiência e todas as esferas da minha vida mudou. 

Eu saí de casa através da música. A música me resgatou de mim e eu enxerguei nela esse espaço de resgate identitário e de denúncia social. Ela me trouxe de volta pra vida”. 

Longe de ser uma história de superação da deficiência, o que Fillipe nos conta em nada se aproxima de um caminho que busca cura biológica de si próprio, mas de uma materialidade que se constrói com força a partir de sua condição. É compreendendo e reafirmando o seu corpo que Fillipe denuncia as opressões e constrói uma rede de apoio no Brasil inteiro de artistas com deficiência, no intuito de fortificar o que são e lançar o que produzem, pois, segundo ele:  

“A música me tirou de uma situação muito ruim de tristeza, de não querer mais viver publicamente por me achar diferente, porque a sociedade fazia eu me sentir assim. Eu acredito nisso que a música é um universo. Acho que a arte em todas as suas formas ela resgata porque ela traz emoção, autoestima, orgulho, expressão, resistência [...] então, em meu trabalho, uso a arte como resgate, porque pra mim é isso [...]”.

Inúmeros estudos existem sobre as temáticas acerca da deficiência, mas dificilmente trazem estas pessoas como protagonistas potentes em suas próprias manifestações. Comumente estes tratam sobre o que um terceiro – sem deficiência – poderá fazer no trabalho institucional de inclusão, especialmente na escola. A arte tem sido usada como estratégia, raramente como um espaço criado para e, principalmente, por pessoas que têm deficiência.  

Fillipe, ao construir arte e apresentar o seu corpo como uma potência criativa, inclusive, se aliando às lutas estruturais profundas como as de combate à desigualdade social, as antirracistas e antipatriarcais afronta à ordem porque inverte a ótica acerca da reafirmação de incapacidade desses sujeitos. É tal qual um abraço vital de consciência e resistência. 

No momento em que Fillipe sobe no palco pernambucano e denuncia o racismo e a situação das mães e cuidadoras pretas de pessoas com deficiência, ele quebra os muros de inferiorização ao seu corpo - inclusive do próprio campo progressista que não traz a deficiência como pauta – e rompe a ótica de uma existência solitária, reafirmando a necessidade de uma luta interseccional, deslocando-se da experiência individual para a coletiva. 

O corpo de Fillipe é socialmente construído como inesperado diante da expectativa do discurso da normatividade, no entanto, a sua história e seu trabalho desafiam o julgamento estético de tragédia pessoal, para a reafirmação de uma condição historicamente oprimida e que alega urgentemente o direito trivial de existência. 

Em seu albúm “Conflitos”, o refrão da música “Herói” diz: 

“Que eu possa voar, chegar mais alto que num instante. Que me deixem sonhar, sonhar bem mais que o bastante”. 

Na vida da maioria das pessoas com deficiência, o bastante ainda é o que se sonha, mas são sujeitos como Fillipe que chamam pelo direito de estar no mundo e que denunciam que a grande tragédia é a nossa população ainda ter que lutar pelo básico. 

Em seu livro Ensinando Comunidade, Bell Hooks apontava, ao falar da sua história com seu grande parceiro de trabalho e vida Ron, algumas estratégias sobre se criar senso de comunidade e envolvimentos compartilhados. Uma de suas “táticas” para alcançar esse objetivo era o compartilhamento de histórias como gesto de intimidade. 

Mesmo que o contexto em que Hooks se debruçou tenha sido outro, acredito que evidenciar o trabalho desse artista é uma tentativa de nos aliarmos a sua vivência crítica e assim cruzarmos nossas histórias, interesses e lutas. Por isso, convido todas, todos e todes a conhecer o que diz Fillipe Costa e, se possível for, voar junto com ele. 

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga