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Política sobre drogas: do que estamos falando?

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Cida Pedrosa propôs projeto de lei (PL 207/2022) para garantir uma política de uso e distribuição gratuita, pelo SUS, de medicamentos derivados da cannabis no Recife - Paulo Pinto/Agência Brasil
O tráfico movimenta milhões em todo o país, mas a violência fica restrita às periferias

Recentemente, a Câmara de Vereadores e Vereadoras do Recife aprovou um requerimento contrário à Marcha da Maconha na capital pernambucana. Obviamente, fui contra. Primeiro, é antidemocrático ir de encontro ao direito de expressão e de manifestação do povo. Os Tribunais de Justiça já deferiram que é autêntica e legal a junção de grupos que lutam por uma causa. No caso da Marcha, uma causa extremamente legítima. 

Explico: antes de mais nada, é preciso voltarmos ao passado para compreendermos o histórico envolvendo a erva. A cannabis sativa, segundo pesquisadores, pode ter sido a primeira planta cultivada pela humanidade. Ela também chegou ao Brasil pelos portugueses, na versão do cânhamo, nas velas das navegações colonizadoras. A planta era utilizada de muitas maneiras, pelos mais diferentes povos. No Brasil, a primeira lei que restringiu o uso da cannabis foi feita pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 1830, e tem claro viés racista. 

O uso e a venda do “pito de pango”, comumente conhecido na época, eram distintos entre pessoas brancas e negras. As multas eram muito mais vorazes para os escravizados com o objetivo de exercer o controle sobre essa população. “A maconha era associada às classes baixas, aos mulatos e a bandidagem”, como diz a pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Luísa Saad, em seu livro “Fumo Negro: a criminalização da maconha pós-abolição”, do qual sugiro profundamente a leitura. 

Até hoje, a proibição do uso da erva ainda é voltada para a camada negra e mais pobre da nossa população. Brancos a consomem e plantam sem a mesma vigilância policial e não são raras as notícias de drogas apreendidas em aviões de políticos ou em apartamentos de luxo. O tráfico movimenta milhões em todo o país, mas a violência fica restrita às periferias, matando nossos jovens e aumentando o número de encarcerados. É inadmissível tirar a liberdade de alguém - ou a vida - por causa de um baseado. 

Outro argumento falacioso e repetido inúmeras vezes pelos conservadores é de que a maconha leva a overdose ou que ela é porta de entrada para outras drogas. Não há na literatura científica tal dado. Pelo contrário, ela é vista, muitas vezes, como redutora de danos para substâncias mais pesadas. A tal porta de entrada, de acordo com diversos especialistas, é o álcool, livremente aceito e que traz diversos malefícios. Nossa sociedade machista leva os meninos a experimentarem desde cedo a sensação da embriaguez com um “se não beber, não é homem”, causando excessos, permissividades e levando a normalizar o coma alcóolico. 

Se quisermos levar essa discussão a sério, porque não falamos também sobre o vício em remédios de tarja preta, em tabaco, em açúcar? Todos são legalizados e causam sérios danos. Porque não levamos em conta a experiência de diversos países que tratam a descriminalização de forma mais humana, baseada na autonomia e no livre arbítrio de cada um e de cada uma? Porque não encaramos esse debate como uma questão de saúde pública, ofertando a quem precisa cuidado, acesso a um uso minimamente seguro e, principalmente, respeito às individualidades? 

Aqui, principalmente em Pernambuco, me parece que patinamos em uma discussão cheia de interesses privados, hipocrisia e desinformação. Mesmo com uma premiação da ONU pela excelência do nosso Programa Atitude - voltado para usuários de drogas e pautado na redução de danos - ainda somos bombardeados pelas Comunidades Terapêuticas que “tratam” esses pacientes com vieses religiosos conservadores em troca de voto. Precisamos fortalecer as políticas públicas que afirmam nossos direitos e não as que os violam.  

Milito pela legalização das drogas há muitos anos, desde a minha graduação, na Faculdade de Direito do Recife, em 1987. Acredito nas liberdades individuais e li o bastante para entender que nós, seres humanos, utilizamos substâncias psicoativas desde que nos entendemos por gente. Como diz o neurocientista Sidarta Ribeiro, o sono REM (o que nos faz sonhar) e nossa capacidade de imaginar o amanhã (muitas vezes, auxiliados por tais substâncias) é o que nos fez sobreviver até hoje nesse mundo. Quem quiser entender um pouco mais sobre o tema ou saber como elas têm auxiliado em diversas formas nas terapias para cura de traumas, sugiro se debruçar sobre os estudos de Sidarta. 

Por falar em terapias, a Marcha da Maconha também é de extrema importância para quem faz o uso medicinal da cannabis. Se não fosse pela luta incessante das mulheres para dar mais qualidade de vida aos seus filhos e filhas, não teríamos acesso ao óleo para crianças com epilepsia, autistas e tantas outras enfermidades e condições. Sabe o que significa reduzir de 40 a 50 convulsões/dia para duas por mês? Os remédios alopáticos provocam uma série de efeitos colaterais, já a planta... São inúmeras as evidências científicas dos benefícios da erva e seus derivados no tratamento de patologias e o Brasil poderia estar à frente das pesquisas, caso tratássemos esse assunto tão importante pela luz da ciência e não da hipocrisia. 

Na ala da frente da Marcha, há o trenzinho com crianças usuárias desses medicamentos, caminhando junto a suas famílias, muitas delas evangélicas, e que dão seus depoimentos sobre as mudanças de suas vidas. Utilizo o óleo há muitos anos e falo isso publicamente. Tenho dores crônicas no quadril e, hoje, também trato uma doença autoimune. Tenho acesso a médicos que os prescrevem e condições financeiras de arcar com o custo - altíssimo por sinal. Mas, e quem não tem? Como ficam as famílias que ganham um salário mínimo? Mesmo com o direito ao cultivo, não deveria o Estado oferecer remédios, pelo SUS, garantindo a qualidade do que será extraído? Já que os estudos comprovam a eficácia das substâncias para uma quantidade enorme de patologias, todos e todas não deveriam, por direito, terem acesso? 

Assim que iniciei meu mandato na Câmara Municipal, escrevi um projeto de lei (PL 207/2022) para garantir uma política de uso e distribuição gratuita, pelo SUS, de medicamentos derivados da cannabis no Recife. Consegui a assinatura de 26 vereadores e vereadoras dos mais diversos campos ideológicos, coisa rara de acontecer em um ambiente legislativo ainda tão polarizado. O projeto segue em tramitação e, caso aprovado, ajudará bastante gente. Já temos um laboratório público, expertise na feitura das substâncias e profissionais competentes para prescrever de acordo com cada caso. Portanto, nada mais do que justo que possamos ampliar o acesso para melhorar a vida de muitas pessoas.

Sou sertaneja, conheço bem o solo da minha terra. Se fosse legalizada, a maconha poderia ser livremente plantada e os agricultores e agricultoras poderiam ter trabalho garantido, gerar renda e mudar suas realidades. O Brasil poderia ser um dos principais fornecedores do mundo e investir o dinheiro que hoje fica na mão de traficantes, em políticas de educação, de moradia, que buscassem o bem viver. 

Já conquistamos um avanço com a chegada do governo Lula e um realinhamento das políticas sobre drogas com os direitos humanos. Ainda falta muito, mas contem comigo e com o nosso mandato nessa luta. Enquanto estiver como vereadora, seguirei na trincheira do combate ao retrocesso, na valorização da vida. Utilizarei, quantas vezes for preciso, a tribuna para defender a legalização e, espero comemorar muito em breve, o dia em que o Brasil se despedirá das suas raízes racistas, abrindo caminho para o novo, para a potência de ser quem somos. 

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga