Rio Grande do Sul

APOSENTADORIA

A previdência dos servidores municipais e a lógica neoliberal do ajuste fiscal

Servidores públicos passaram, desde a Constituição Federal de 1988, por três reformas previdenciárias significativas

Brasil de Fato RS | Porto Alegre |
Porto Alegre foi uma das cidades que, mesmo sob protesto dos servidores, fez reforma da previdência municipal - Foto: Simpa

A partir de 2016, sob o predomínio no país de uma lógica neoliberal cada vez mais extremada, sobretudo a partir de 2019, um dos pilares da política social do Estado brasileiro, o da previdência social, passou por uma nova reforma pautada pelo ajuste, em particular, no funcionalismo público. Em meio a uma agenda de retrocessos nas mais variadas áreas de política governamental, a reforma previdenciária de 2019 é considerada a mais severa das reformas historicamente implementadas à previdência dos servidores públicos.

Como reação, em particular, aos impactos regressivos da referida reforma para os servidores municipais vinculados aos chamados Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS), foi protocolada, no mês de agosto de 2023, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 38. Elaborada pela Confederação Nacional dos Municípios, a PEC propõe modificações do sistema voltadas à sustentabilidade fiscal dos municípios.

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Ao fazermos uma retomada histórica, cabe esclarecer que os servidores públicos, dentre eles os municipais, submetidos aos RPPS, passaram, desde a Constituição Federal de 1988, por três reformas previdenciárias significativas. De modo amplo, faz-se possível afirmar que essas reformas, sob vigência do ideário neoliberal, mais ou menos ortodoxo a depender da conjuntura concreta, alteraram a tradicional característica da previdência social como política pública de proteção social para um mecanismo de ajuste das contas estatais.

Em 1998, durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, foi promulgada a Emenda Constitucional (EC) nº 20. A referida EC trouxe o conceito de equilíbrio atuarial para os RPPS, com o objetivo de garantir equivalência entre as receitas estimadas e as obrigações projetadas a longo prazo. Assim, por meio da pretensa “autossustentabilidade” do sistema, retirava-se do Estado a clássica função de garantir o pagamento dos benefícios previdenciários. Surge, aqui, o chamado passivo financeiro e atuarial, e a nova responsabilidade dos servidores de equacioná-lo.

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Em 2003, foi promulgada a EC nº 41, que estendeu a contribuição previdenciária para os aposentados e pensionistas sobre o que ultrapassasse o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social. A referida emenda também instituiu a média das contribuições para o cálculo dos proventos de aposentadoria. Tais medidas buscaram aprofundar a referida autossustentabilidade do sistema ao minorar as despesas previdenciárias e os encargos dos entes federativos com os seus regimes previdenciários, no que se refere ao equacionamento do passivo financeiro e atuarial.

Já em 2019, em meio, como dito, a um contexto de reformas neoliberais mais profundas, a promulgação da EC nº 103, proposta pelo governo Bolsonaro, alicerçada no ajuste fiscal e no equilíbrio atuarial dos RPPS, cristalizou uma reforma previdenciária ainda mais socialmente regressiva. A referida reforma estabeleceu medidas como aumento da alíquota de contribuição dos servidores; redução da faixa de isenção de contribuição de aposentados e pensionistas para um salário mínimo; aplicação de contribuição extraordinária para ativos, aposentados e pensionistas em caso de déficit atuarial do RPPS; instituição do Regime de Previdência Complementar para os entes federativos; regras de aposentadoria mais rigorosas para os servidores da União.

Mas a principal característica da EC nº 103 foi ter dado autonomia aos estados e municípios para alterarem os critérios de elegibilidade, cálculo e reajuste de proventos de acordo com a suas realidades atuariais. A medida constitui um fato inédito pois, desde a Constituição de 1988, as regras sempre foram constitucionalizadas para todos os servidores brasileiros, independentemente do nível federativo de que se trate.

A despeito da autonomia cristalizada pela reforma em questão, a realidade demonstra, por exemplo, que as reformas previdenciárias locais não estão sendo efetivadas como o esperado. Apenas pouco mais de 32% dos municípios fizeram a reforma dos seus sistemas previdenciários, e, conforme argumento da Confederação Nacional dos Municípios, os déficits previdenciários estão esgotando a capacidade fiscal de tais entes federativos.

Com base em tal constatação, a referida Confederação protocolou, recentemente, como já expresso, a PEC nº 38 no intuito de que as regras dos servidores federais sejam aplicadas aos servidores municipais cujos municípios não tenham reformado o sistema previdenciário, ou tenham elaborado uma reforma mais branda à da União. Para além do argumento da sustentabilidade fiscal, resulta evidente a preocupação da Confederação, também, com a perda de capital político que uma reforma previdenciária restritiva poderia acarretar às lideranças locais, incumbidas de promover melhores condições de vida e de trabalho às suas populações.

* Professor do curso de Administração Pública e Social da Ufrgs.

** Servidor municipal egresso do curso de Administração Pública e Social da Ufrgs

*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Marcelo Ferreira