Rio Grande do Sul

CRÔNICA

A grande doença: descrição, sintomas, disseminação e terapêutica

Doença atingiu boa parte da população brasileira entre 2018 e 2022; assintomáticos só foram detectados nas eleições

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Primariamente, a pessoa acometida apresenta dissonância cognitiva, negacionismo da realidade e crença exacerbada em notícias falsas" - Reprodução/Redes Sociais via O Povo

Então pessoal, estou fazendo a descrição desta doença que acometeu o Brasil desde aproximadamente 2018, talvez um pouco antes. Apesar de já se ter grandes conhecimentos sobre ela, ainda não tem uma denominação definitiva. Tenho sopesado alguns nomes antes de enviar para publicação no “The Journal of Infectious Diseases”, mas ainda não cheguei a uma que seja satisfatória (talvez os leitores ajudem com isso).

Ei-la aí:

Definição:

Doença da alma e dos afetos causada por ignorância, ressentimento, recalques mal elaborados, más companhias, uso inadvertido de redes sociais e idolatria de falsos mitos. 

Sintomas:

A sintomatologia é extensa, complexa e interdependente, apresentando muitas comorbidades.

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Primariamente, a pessoa acometida apresenta dissonância cognitiva, negacionismo da realidade e crença exacerbada em notícias falsas.

É comum muitos acometidos passarem a achar OK exibir comportamento escroto, babaca, agressivo, prepotente, autoritário e ignorante (tipo o Rica Perroni, recentemente), normalmente com viés de preconceito de classe, gênero ou raça. Uma característica destes comportamentos típicos é que, apesar de serem percebidos como horríveis e disfuncionais por pessoas sadias, são descritos como virtude pelos portadores, que não raramente glorificam tais condutas e reforçam-nas mutuamente entre eles.

A confusão mental é também um dos sintomas. Em geral, o portador tende a confundir suas próprias vontades e crenças com a verdade factual, confunde notícias falsas com opinião, incitação ao crime e ao ódio com liberdade de expressão, e mentira com narrativa ou interpretação.

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Também é comum apresentarem comportamento visivelmente contraditório, quando não hipócrita, como o falastrão que vive se retratando, o valente que não assume consequências, o moralista que tem perversões no armário, o cristão que só prega por dinheiro, e o libertário que tem nostalgia de ditaduras passadas.

Não se sabe ainda se é uma doença da cognição ou do comportamento, ou dos dois (tipo cognitivo comportamental), ou ainda o que influencia o que, mas se tem evidências fortes de que a correlação entre estes dois aspectos está sempre presente.

Modo de transmissão:

Apesar do agente causador primário já estar quase erradicado do ambiente público, a doença permanece sendo transmitida por agentes secundários, como grupos de whatsApp, canais de vídeo que transmitem notícias falsas e teorias da conspiração, algumas igrejas neopentecostais, e mesmo canais de televisão e rádio que mantém ativas cepas patogênicas da doença e ativam-nas constantemente na população vulnerável.

O agente patógeno circula muito também em rodeios, feiras agropecuárias e shows de falsos sertanejos, além de clubes de tiro, motociatas, boleias de caminhão, clubes sociais vips, campos de golfe, sindicatos e associações patronais. E na Faria Lima.

Prevalência:

A doença atingiu uma grande parcela da população brasileira entre 2018 e 2022, embora boa parte com sintomas fracos e uma pequena parcela assintomática, só detectada por ocasião das eleições. Após uma grande campanha de sanitização, de 2022 para cá conseguiu-se isolar o agente patógeno primário e reduzir a infecção e a transmissão comunitária, tendo diminuído posteriormente a incidência para algo em torno de 20 a 30% da população brasileira, o que ainda é um índice preocupante e perigoso, digno de alerta e vigilância.

População afetada:

Embora exista prevalência de alguns grupos, como homens entre a meia idade a idosos, empresários, profissionais liberais, militares, pessoas da classe média para cima, dentre outros, não é possível ainda fazer uma distribuição demográfica precisa da doença pois ela atinge praticamente todos os estratos.

Comportamentos de risco:

Eis alguns deles, ler somente manchetes ou ver apenas vídeos curtos; não checar a origem e a credibilidade das notícias que consome; participar de grupos de WhatsApp que propaguem notícias falsas; dispensar o conhecimento histórico fundamentado; frequentar igrejas que exigem pesadas doações, que propaguem a ideia de prosperidade como graça divina, que fazem negociatas com o Divino, ou que falem em guerra santa e/ou em “escolhidos” de Deus para serem nossos governantes; pensar e se comportar de forma egoísta; faltar a aula sobre consciência de classe.

Prevenção:

Ler boas fontes históricas; buscar fontes de informação confiáveis, de preferência aquelas que propaguem notícias bem apuradas e façam análises racionais sobre os fatos; exercitar a generosidade e a empatia; pensar com base em lógica e evidências; ir do pensamento maniqueísta para o dialético; desenvolver consciência de classe. Ah, aos primeiros sintomas, sair das redes sociais.

Tratamento e cura:

Embora a cura não tenha sido ainda confirmada, a doença pode ser tratada para a possível remissão de sintomas. A terapêutica, porém, não é definitiva, e segue quatro métodos de tratamento, usados as vezes de forma alternativa, as vezes de forma complementar.

O primeiro é o tratamento racionalista: neste, a pessoa acometida é submetida a choques de realidade, por meio de argumentações lógicas e apresentação de fatos e dados que confrontem-na e possam arrancá-la da realidade paralela na qual se encontra. Este método se baseia na concepção de que se trata de uma doença do sistema cognitivo, e de que este pode ser “corrigido” adicionando-se a ele informações e raciocínios lógicos.

Este tratamento, porém, geralmente apresenta baixa eficácia, pois é natural que as pessoas, quando confrontadas ou contraditas, mesmo que inicialmente recuem, tendem a se apegar ainda mais às suas próprias crenças e argumentações como forma de reação e resistência, visando preservar aquilo que entendem ser a sua própria identidade.

O segundo método é o socrático (ou da maiêutica socrática): é uma variação do primeiro, por ser também racionalista, mas tende a ser mais eficaz pois reduz a reação e a resistência do paciente. O objetivo deste método é que a pessoa mesma vá desconstruindo aqueles conhecimentos e crenças que a levaram à dissonância cognitiva, e vá construindo aqueles que a levariam à cura ou à remissão dos sintomas. Cabe ao terapeuta, neste método, conduzir este processo por meio de perguntas inteligentes, racionais e orientadas, visando ir paulatinamente reduzindo a caoticidade e as contradições cognitivas do paciente.

O terceiro é o método límbico: este parte do pressuposto de que as pessoas não mudam de fato se não forem conquistadas pelos afetos, que são eles que pautam as crenças e a própria interpretação que elas fazem da realidade, e que são as emoções e afetos que quebram as resistências ao outro e à própria revisão de suas posições e crenças. Ele parte do pressuposto, também, de que muitas pessoas foram contaminadas porque se sentiram acolhidas e tiveram afetos e emoções que foram supridos pelos grupos dos quais passaram a fazer parte depois de infectados. Sendo assim, este método visa atuar sobre o sistema límbico por meio da experiência, tentando criar afetos positivos em relação àquilo que a pessoa em geral ignora, resiste ou ataca.

Um exemplo de aplicação deste método poderia ser pegar uma daquelas pessoas que chama os Sem Terra de terroristas e levá-la a uma feira do MST, ou a um assentamento produtivo, deixar que converse com os agricultores, que conheça as pessoas, que experiencie a realidade por dentro. Enquanto isso, pode-se ir adicionando informações sobre a produção e os produtos do MST que hoje estão nas prateleiras dos mercados, sobre reforma agrária, etc.

Eu, particularmente, penso que o mais eficaz é começar pelo método límbico, e durante e após a experiência límbica ir dosando alternativamente o método socrático e o racionalista.

Por fim, quando nenhum destes tratamentos for possível, ou quando se constate que se trata mesmo de um desvio moral incorrigível, que em alguns casos pode flertar com o crime, a recomendação tem sido evitar o contato e, quando possível, isolar o indivíduo do convívio social.

* Professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Marcelo Ferreira