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O aborto deve ser livre, acessível e pelo SUS

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Feminista ergue lenço verde, símbolo da esperança na luta pela descriminalização do aborto em países da América Latina
Feminista ergue lenço verde, símbolo da esperança na luta pela descriminalização do aborto em países da América Latina - MAURO PIMENTEL / AFP
Aborto deve ser uma possibilidade livre de estigma, preconceito, risco de vida, medo e insegurança

O dia 28 de setembro é o Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto, e esse ano temos a tarefa histórica de nos mobilizarmos diante de uma possibilidade que se mostra possível. Nesse momento em que nossas atenções estão voltadas para a votação no STF em torno da descriminização do aborto até 12 semanas de gestação, a partir da ADPF 442, é importante trazer à tona quem são as mulheres que historicamente sofrem e que morrem com a criminalização. Não se pode falar sobre a pauta do aborto no Brasil sem fazer o devido recorte de raça e classe para se compreender quem é realmente afetada por essa proibição e à serviço de quem, e explorar essa diferentes dimensões sobre a pauta.

Na segunda metade do século XX o Brasil possuía uma dívida com o FMI (Fundo Monetário Internacional), que é um dos instrumentos do imperialismo estadunidense, dentre suas mais diversas formas de intervenção nos países que se encontram na periferia do sistema capitalista, sendo o Brasil um deles. Durante esse período os movimentos feministas e movimentos de mulheres possuíam uma pauta em comum em torno da saúde e do controle de natalidade que vinham ocorrendo, como parte de uma agenda do FMI. Ou seja, a dívida foi uma forma de impor um controle sobre os corpos das mulheres, mais especificamente, das mulheres pretas e pobres brasileiras. O controle de natalidade era então uma realidade, devido ao aumento na população de países considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, visto como preocupante por aqueles países imperialistas. O governo no Brasil, fruto do golpe empresarial-militar, apesar de adotar oficialmente um discurso pró-natalidade, na realidade agia de acordo com os interesses estrangeiros.

Em 1965 é criada a BEMFAM (Sociedade Civil Bem Estar Familiar no Brasil), que foi uma entidade que construiu a ideologia do planejamento familiar no país e que era ligada à IPPF (International Planned Parenthood Federation), um órgão nascido no ano de 1946, com sede em Londres, e que era órgão consultivo da ONU. Na teoria, a sociedade funcionaria como meio de levar informação e acesso à possibilidades, sobretudo para a vida das mulheres, mas na prática funcionou como uma forma de controle e esterilização. A BEMFAM serviu como um órgão que promoveu a esterilização de mulheres, e de forma extremamente violenta. Além da distribuição de métodos contraceptivos como a pílula anticoncepcional, sem nenhum tipo de instrução ou informação, para que a mulher tivesse autonomia de decidir se usaria ou não, havia também casos de procedimentos de laqueaduras de forma compulsória, por ser um procedimento que além de barato, tem alta eficácia. Também casos de esterilização após o parto eram comuns, sem que houvesse o conhecimento por parte da mulher. Tudo isso acontecia com mulheres negras e pobres, e mais comumente nas regiões norte e nordeste do país.

Apesar da aparente distância no tempo entre os anos 1960 e 1970 e os tempos atuais, nós mulheres continuamos sujeitas ao controle masculino, patriarcal e imperialista dos nossos corpos, de formas violentas e dolorosas. Não apenas o aborto em si, mas todas as questões em torno da saúde e dos corpos das mulheres são tabus na nossa sociedade, e assim como muito do que é vivenciado, fazem parte de construções sociais bem planejadas e com objetivos bem delineados. O processo de transformação do corpo feminino em tabu remonta à construção do capitalismo em seus estágios mais iniciais de desenvolvimento, é assim, então, que nossos corpos se tornam mais uma variável que poderia ou não gerar lucro, de acordo com a forma que seria pensada e lida. É dentro disso, portanto, que as questões reprodutivas das mulheres se tornam algo a mais ser pensado de acordo com a lógica da acumulação capitalista, controlado e socialmente remodelado, a partir das demandas políticas, econômicas e sociais, criadas pelos homens.

A violência a qual estamos sujeitas diariamente, por conta da proibição do aborto é enorme, e perpassa nossos corpos, vivências e relações. É no acesso à informação, possibilidade de uma educação sexual, planejamento familiar, conhecimento sobre o próprio corpo e todas as possibilidades existentes para um uso correto dos métodos contraceptivos, e da própria possibilidade do aborto, que está uma das chaves para a nossa saúde, física e mental. É importante que, ao fazer a análise da situação das mulheres no Brasil, se tenha o olhar de trazer o importante recorte enquanto mulheres latino-americanas, sujeitas a diferentes tipos de pressões a partir dessa realidade e sua posição dentro da perspectiva de manter nossos corpos à serviços dos países que se consideram de “1º mundo”.

Durante os anos 60 e 70 os movimentos sociais tiveram o papel de lutar contra o que estava sendo imposto, expor o que vinha ocorrendo, além de levar informações e apoio para as mulheres, como formas de combate às políticas em andamento e seus alvos. Hoje, continuamos na mesma luta, e agora temos uma possibilidade de uma grande vitória. Vitória essa que, para ser lograda, precisará dos movimentos populares e toda a mobilização e organização. Até lá, continuaremos lutando, esperando por dias melhores, pois sem esperança não existe um projeto de vida e de sociedade para lutarmos.

É em meio à uma conjuntura do crescimento do fundamentalismo e em que notícias falsas tem força de eleger um presidente e se espalhar com tamanha rapidez, que precisamos destacar o óbvio: que decisões e opiniões pessoais, que perpassam por escolhas próprias e visões religiosas e conservadores, não devam se sobrepor aos nossos corpos e nossa autonomia sobre nossos destinos e sobre questões de saúde pública. É necessário continuar levando informações concretas em torno de como se dá a descriminalização e legalização do aborto, a partir de dados, experiências, destacando suas consequências para as mulheres e a sociedade. A maternidade é uma escolha, não é uma obrigação, como a sociedade não cansa de nos incutir, e o aborto deve ser uma possibilidade livre de estigma, preconceito, risco de vida, medo e insegurança, o aborto deve ser livre, acessível e pelo SUS.

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga