Bahia

Violência de Estado

Por que é importante juventudes negras discutirem novos modelos de segurança pública?

Gabriela Ramos, do Instituto Odara, fala em entrevista sobre proteção e protagonismo das juventudes negras

Salvador |
Instituto Odara promoveu Encontro de Juventudes Negras por um novo modelo de Segurança Pública - Instituto Odara

A violência policial na Bahia esteve no centro das discussões e denúncias dos movimentos e organizações populares ao longo de 2023. De acordo com as várias organizações ouvidas pelo Brasil de Fato Bahia ao longo do ano, o estado não tem nenhuma política pública ou programa implementado para dar suporte às famílias vítimas da violência de Estado.

Uma organização da sociedade civil que tem prestado esse serviço atualmente é o Instituto Odara, através do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, que atua com mulheres mães e familiares de vítimas da letalidade do Estado e com jovens entre 15 e 29 anos nas periferias de Salvador, prestando inclusive assistência jurídica a familiares sobreviventes da violência.

Em fins de novembro, o projeto promoveu o Encontro de Juventudes Negras por um novo modelo de Segurança Pública: A gente combinamos de não morrer. Com foco na juventude periférica, o encontro debateu saídas, perspectivas e discutiu reparação.

“Óbvio que nada protege [os jovens] absolutamente, mas ter consciência da situação em que vivem e entender as experiências dos outros faz com que eles reflitam de forma um pouco mais aprofundada e pensem em formas de reduzir os riscos de serem vitimados por essa violência”, destaca Gabriela Ramos, advogada e coordenadora do projeto.

Na entrevista a seguir, Gabriela Ramos fala sobre a organização da juventude frente à violência estatal, perspectivas de uma outra segurança pública e reparação ao povo negro.

Brasil de Fato Bahia – Num estado com tão alto índice de assassinato de jovens negros pelas forças policiais, qual a importância de trazer essa juventude para próximo do debate sobre modelos de segurança pública?
Gabriela Ramos – A importância de trazer a juventude para debater a segurança pública, e mais que isso, as dinâmicas de violência da cidade e como é racializada a atuação das instituições policiais, é para que ela tome consciência ou amplie a consciência acerca das ameaças que a cerca, para entender um pouco como tem funcionado a atuação policial e como isso impacta diretamente nas suas vidas.

Óbvio que essas juventudes já sabem disso em alguma medida. Mas quando elas começam a compartilhar suas experiências, sobretudo pensando que a nossa atuação com esses jovens se dá em três territórios distintos de Salvador, isso aguça os sentidos delas para isso. Eles começam a amadurecer e pensar em mecanismos de tentar reduzir as chances de serem vitimados por essas violências. Óbvio que nada os protege absolutamente, mas ter consciência da situação em que vivem e entender as experiências dos outros faz com que eles reflitam de forma um pouco mais aprofundada e pensem em formas de reduzir os riscos de serem vitimados por essa violência.

É esse o nosso intuito. Fazer com que eles entendam também as potências que eles têm, que podem explorar para lutar por justiças, desde a justiça no sentido institucional, no que tange a violências que familiares podem ter sido vitimados, seja a luta por justiça social também. Pensar a segurança pública atravessada pelas dimensões da justiça social também é importante para que eles passem a se mobilizar, se articular e atuar nesse sentido.


Gabriela Ramos, advogada e coordenadora do Projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar / Instituto Odara

Durante o Encontro de Juventudes Negras foi feito o lançamento do “Dossiê Quem vai contar os corpos?”. Poderia comentar com a gente os principais pontos trazidos pela publicação?
Nós elaboramos o dossiê pensando em fazer uma denúncia da violência, em especial na cidade de Salvador, sobretudo no que diz respeito à violência policial. Então, nós elencamos os casos que são acompanhados pela nossa assessoria jurídica do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, em especial os casos em que as vítimas foram crianças e adolescentes.

A gente conta lá as histórias dessas vítimas, mas também indica o que nós recomendamos que pode ser feito para evitar que outras crianças e outros adolescentes sejam vitimados pela polícia. Chamar atenção das instituições que são responsáveis pelo controle da atuação policial, chamar atenção também para as revitimizações que as famílias passam durante os processos e procedimentos investigativos e como todo o sistema todo o Estado tem falhado. Mas, em especial, o sistema de justiça tem falhado em oferecer uma resposta minimamente adequada, num tempo minimamente hábil às famílias.

Para além disso, também estamos pensando em dimensões de reparação para a população negra, pensando também em como minimizar os impactos perversos, dolorosos, profundos a que são submetidas as famílias dessas vítimas. As crianças que ficam, sejam porque são filhas de vítimas de violência policial, seja porque são irmãos e irmãs dessas vítimas, seja por terem presenciado, seja por agora experimentarem a orfandade, seja porque as maternidades e paternidades tão violentadas acabam gerando desdobramentos na forma como esses pais e mães se relacionam com as crianças sobreviventes.

Diante desse cenário, como pensar outros modelos de políticas de segurança pública que garanta, efetivamente, a segurança e a vida para todas as pessoas?
Pensar em outros modelos de segurança pública precisa partir do pressuposto de que o modelo que tem sido executado, especialmente aqui na Bahia, é um modelo que promove mais a violência do que reduz a violência. Digo isso porque a letalidade só aumenta.

A gente tem a Bahia despontando no ranking dos estados mais violentos do país, com pelo menos 13 cidades entre as mais violentas do país inteiro. E a única resposta do estado da Bahia a essas dinâmicas de violência é mais operações policiais, mais ataques. Nós não vemos nenhum tipo de ação coordenada com outras áreas que possam promover justiça social, que possam oportunizar às pessoas outros horizontes de pensar segurança pública.

Nós do [Instituto] Odara entendemos que segurança pública precisa ser pensada, atravessada, articulada com outros campos, com outras áreas, a exemplo de emprego e renda, educação, saúde, moradia, políticas de drogas não beligerantes, portanto, que pensem o uso das drogas a partir da perspectiva da saúde, quando há o excesso sem a prática das diretrizes de redução de danos.

Então, outro modelo de segurança pública só é possível quando partimos do pressuposto que este, que parte sempre para a lógica da guerra, é ineficiente se desejarmos, enquanto projeto político, de fato, reduzir as violências em territórios e contra sujeitos racializados e vulnerabilizados socialmente.

Um dos temas presentes também no encontro e no dossiê foi a reparação. Como tem sido pensada essa reparação em relação às juventudes negras?
O tema da reparação não é um tema novo, mas está voltando com tudo nas agendas políticas não só aqui no Brasil, como na diáspora, sobretudo na América Latina. As mulheres negras têm pensado a reparação em diversas perspectivas. E as juventudes negras têm pensado que a reparação precisa reposicionar uma série de coisas na sociedade, precisa ser pensada a partir da perspectiva das instituições que lucraram, que se beneficiaram, que inclusive foram criadas a partir e para sustentar a escravidão, elas precisam ser responsabilizadas. Ser responsabilizadas significa, inclusive, reverter todo esse lucro que elas tiveram durante esses anos todos em ações para tirar a população negra da condição de vulnerabilidade em que ela foi colocada ao longo de 500 anos.

Atualmente, a gente está vendo inclusive o Banco do Brasil pedindo desculpas, mas pede desculpas através de uma mulher negra. É muito complicado que uma mulher negra seja colocada nessa posição. Não é através dela que o Banco do Brasil deve se desculpar, ela é mais uma vítima, mais uma sujeita que precisa ser reparada. Ela ocupar um lugar de destaque, um lugar de diretoria dentro de uma instituição como o Banco do Brasil não significa que os pretos venceram, que a favela venceu. Óbvio que é importante que esses cargos sejam redistribuídos, inclusive também entre as pessoas negras e as mulheres negras especialmente. No entanto, isso não significa reparação. O que significa reparação é o Banco do Brasil rever as suas políticas internas que vulnerabilizam mais a população negra. Significa o Banco do Brasil pensar quanto a população negra foi endividada ao longo desses últimos anos por estar em uma situação de vulnerabilidade social, e que foi colocada nessa posição em decorrência desse histórico de escravidão.

Enfim, o tema da reparação não é um tema simples, é um tema complexo, mas nós temos uma série de apontamentos a esse respeito. Se são utópicos, se são viáveis, se são realizáveis, são outros 500... Acreditamos que todos são concretizáveis, se as instituições de fato estiverem dispostas a promover ou a participar da reparação, e não estiverem agindo simplesmente para limpar suas consciências e manter o status quo dos privilégios e das vulnerabilidades que são distribuídas desproporcionalmente entre as populações negra e branca do país.

Edição: Alfredo Portugal