Pernambuco

ENTREVISTA

Você conhece a questão agrária brasileira? Neuri Rossetto, dirigente nacional do MST, explica

Popularização do conceito é um compromisso do movimento para o próximo período

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Curso de Política em Questões Agrárias reúne militantes de todo o Nordeste. - Foto: Helena Dias/Brasil de Fato Pernambuco

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi fundado em 1984, consolidando-se em três objetivos mobilizadores que perduram até hoje: a luta pela terra, por reforma agrária e por transformação social. Desde então, as ocupações de terra tornaram-se uma das principais maneiras como o movimento se apresenta à sociedade, questionando a função social da propriedade e denunciando terras que não cumprem seu papel social. Esse diálogo sobre o tema, muitas vezes feito com a população urbana também, enfrenta diversos desafios e um deles é o entendimento da questão agrária brasileira.

O MST acredita que uma ampla Reforma Agrária Popular é essencial para construir uma sociedade mais justa e igualitária, descentralizando o acesso à terra e garantindo os direitos das diversas comunidades que nela vivem. Um assunto que não é só do campo.

Pensando nisso, o movimento tem realizado o Curso de Política em Questão Agrária, uma iniciativa promovida pela Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), que no estado pernambucano fez parceria com a Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE) e a Via Campesina Brasil. Em entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco, o dirigente nacional do MST, Neuri Rossetto, explica detalhes sobre o Programa de Reforma Agrária Popular do MST e o seu processo de popularização.


"O nosso programa de Reforma Agrária Popular continua fazendo a luta para que essas terras agricultáveis sejam destinadas à produção de alimentos saudáveis", afirmou Neuri. / Rodolfo Rodrigo

Brasil de Fato: Neuri, para quem nunca teve contato com o tema, o que é a questão agraria?

Neuri Rosseto: Questão agrária é a forma como um país organiza, em determinados momentos históricos, a sua estrutura fundiária e o seu modo de produção na agricultura para atender certos interesses. No caso do Brasil, especificamente, nós vamos ter nos primeiros quatro séculos da nossa história, desde a chegada dos portugueses, um modo de produção e desenvolvimento econômico agroexportador. Ou seja, a agricultura daquele período histórico, de 1500 até 1930, era voltada para a produção de uma monocultura que interessava o mercado externo. Depois, quando começa o processo de industrialização do país, é uma agricultura voltada para a agricultura camponesa, que inicia a produção de alimentos e matérias-primas por meio dos camponeses. Enquanto as grandes propriedades continuaram fazendo uma agricultura para a exportação agropecuária. Nos dois momentos históricos, a questão agrária tratou de dar uma unidade a essa organização da agricultura brasileira, tanto no seu aspecto de produção agropecuária, quanto na sociabilidade e nas legislações de acesso à terra. Isso ajudou também a consolidar uma forma de estrutura fundiária para atender os dois períodos históricos do nosso país. É sempre essencial ter uma base teórica, uma base de conhecimento em todos os seus aspectos. Seja tecnológicos, seja político e social, para que a gente realmente possa pensar o modelo de agricultura que atende os interesses da população brasileira. Que dê uma resposta àquilo que são as necessidades que o povo brasileiro tem referentes à questão da produção na agricultura. Sem isso, essa questão sempre fica deficiente, sempre vai ficar uma uma resposta que não atenderá em plenitude aos interesses da população brasileira.

Brasil de Fato:  Essa questão agrária não é a mesma de 40 anos atrás, tempo que o MST tem atuação. O que propõe o programa de Reforma Agrária Popular do movimento hoje?

Neuri Rosseto: Desde o processo de globalização e do modelo neoliberalismo na produção, mudou radicalmente a questão agrária no Brasil, porque para se inserir no mercado internacional, o país voltou a ser um Brasil que prioriza a exportação de produtos primários. Então, aquelas terras que há 40 anos eram ociosas e poderiam ser distribuídas aos camponeses para produzir alimentos e matéria-prima, hoje são disputadas pelo agronegócio para produzir as chamadas "commodities" e aumentar a capacidade de exportação desses produtos primários. Então terras ociosas há 40, que eram destinada a produção de alimentos, hoje são disputadas para plantio de cana-de-açúcar, de soja e eucalipto para celulose. Ou seja, aquilo que interessa ao mercado internacional, o mercado externo. O nosso programa de Reforma Agrária Popular continua fazendo a luta para que essas terras agricultáveis, prioritariamente, sejam destinadas à produção de alimentos saudáveis para a agricultura brasileira. Portanto, essa mudança que aconteceu na agricultura em função da globalização capitalista nos fez também a pensar uma nova elaboração teórica no conceito de reforma agrária para o país é o que nós chamamos de uma Reforma Agrária Popular, em que defendemos a distribuição de terras para os camponeses e ao mesmo tempo queremos fazer uma disputa do modelo de agricultura para o Brasil, é um modelo que se contrapõe ao agronegócio.

Brasil de Fato: Neuri, esse programa foi feito para se tornar política pública. A conjuntura política atual é favorável? Como você enxerga o diálogo com o governo sobre esse tema no próximo período?

Neuri Rosseto: É claro que a partir da eleição do governo Lula, no ano passado, as condições são mais favoráveis à classe trabalhadora. É um governo que tem um viés progressista, um viés mais identificado com os problemas do povo brasileiro. No entanto, a força política ainda é dominantemente associada ao capital, aos grandes grupos econômicos que monopolizam as terras e monopolizam um agronegócio neste país. Portanto, é muito difícil imaginar que se fará grandes transformações mesmo com o governo progressista. Cabe aos movimento populares, aos movimentos camponeses e a sociedade de modo geral, se mobilizar para que realmente possa acontecer uma mudança. Tanto na estrutura fundiária quanto nos objetivos da produção da agricultura que devem ser voltados para os interesses do povo brasileiro prioritariamente, e não para atender os interesses do mercado externo. A nossa tarefa, mesmo no governo Lula, é organizar a população no campo para promover as lutas populares em defesa de uma Reforma Agrária Popular que realmente prioriza a produção de alimentos saudáveis em nosso país. E assim também assegurar soberania alimentar, para que o nosso país realmente tenha a capacidade de produzir o que o povo brasileiro consome.

 

Edição: Helena Dias