No campo e na cidade

Comunas: entenda como funciona a experiência de autogestão popular na Venezuela

Organizações têm responsabilidade sobre economia e política nos territórios; União Comunera quer articular movimento

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Além da gestão do território, as comunas também realizam trabalho de formação política - União Comunera

A Venezuela tem um tipo próprio de organização social e política que tem como base os bairros urbanos e comunidades rurais: as comunas. Criadas a partir da Lei Orgânica de Comunas, promulgada em 2010 pelo então presidente Hugo Chávez, tais experiências são uma nova forma de organização social baseada na autogestão e com diálogo permanente com o Estado. Elas, inclusive, têm prioridade na transferência de recursos e não precisam ficar restritas a um Estado ou município, ou seja: uma mesma comuna pode abranger mais de uma cidade. 

A União Comunera hoje é a organização que tem maior participação e capilaridade entre as comunas venezuelanas. Fundado em 2022, o grupo tem uma articulação não só na Venezuela, mas também regional mantando laços com movimentos de outros países latino-americanos. Ao Brasil de Fato, o militante e dirigente da União Comunera, Felipe Banega, diz que além de uma organização política, as comunas têm que seguir regras definidas na Constituição.

“A maioria das comunas é uma forma administrativa que não tem nenhum pagamento econômico ou orçamento. Nós solicitamos recursos ante o Estado para executar projetos no território”, afirma. 

As comunas englobam em sua estrutura os conselhos comunais, que são espaços de representação e deliberação. Uma comuna costuma englobar entre cinco e seis conselhos comunais. 

O papel da comuna extrapola as questões políticas e passa também pela adminstração econômica dos recursos. Essas organizações também têm um exercício que é a lei de economia comunal, que reconhece quatro tipos de organização a nível económico: empresas de propriedade social direta comunal, as unidades de produção familiar, os grupos de intercâmbio ou as empresas de propriedade social indireta comunal, que são empresas mistas com metade administrada pelo Estado e metade pela comuna.

Uma das principais inovações das comunas é a implementação de um processo produtivo de propriedade social e de trabalho coletivo. As comunas rurais que têm como base a agricultura, por exemplo, têm uma forma de produção que não visa o lucro. Tudo que é feito tem como objetivo suprir as necessidades da comuna e o excedente vai ao mercado convencional.

::O que está acontecendo na Venezuela::

A comuna El Maizal hoje é a maior em toda a Venezuela e faz parte da União Comunera. Localizada entre os estados de Lara e Portuguesa, o espaço foi fruto de uma ocupação em 2009 que garantiu o lote para a reforma agrária. No local, os agricultores produzem milho, café, leguminosas, hortaliças, farinha de milho e leite e processam queijo e carne com bovinos e suínos. Outro exemplo exitoso de organização é a Cecosa, em Punto Fijo. A comuna distribui cerca de 80% do gás doméstico da região. 

Estado e política das comunas

Para implementar e manter diálogo permanente com essas organizações foi criado o Ministério das Comunas. O órgão é responsável pela relação entre Estado e grupos organizados e pela sistematização das informações e demandas das comunas. De acordo com a pasta, de 2012 a 2023 foram registradas 3.641 comunas, sendo 893 urbanas, 971 rurais, 53 indígenas e 1.724 suburbanas ou mistas.

Mas a organização das comunas também se dá no campo político. A definição de como será a linha de cada organização é gerada em seus conselhos comunais. Além de fazer a gestão das políticas públicas, estes grupos também discutem questões de trabalho e renda da população.

O historiador doutor pela Universidade Nacional das Artes Douglas Altuve afirma que as comunas não têm necessariamente a mesma linha política. “No momento em que se promulga a lei, as comunas são formadas para que todos os setores do país se organizem. Na maioria dos casos, as comunas são de caráter bolivariano. Mas há conselhos comunais que estão organizados e que não são a favor do governo”, afirma ao Brasil de Fato.

Expansão e Estado Comunal

A União Comunera completará dois anos no próximo dia 4 de março. Como parte de um novo projeto, a organização pretende incorporar ou criar comunas em mais 4 estados, além de reativar a presença em Monagas.

Hoje, a União Comunera reúne 65 comunas em 14 estados e mantém o mesmo objetivo desde a fundação: formar um Estado Comunal que tenha como base as organizações sociais. Felipe Banega explica que o Estado Comunal é uma forma que já está na Constituição, mas que precisa ser consolidado.

"Já temos um caminho andado, uma economia forte no território e gozamos de certa autonomia política. A União Comunera surge com a ideia de nos juntar por um projeto maior que consiga estabelecer o projeto do [ex-presidente Hugo] Chávez de um Estado Comunal. Este projeto envolve a construção de um Estado novo, com novas institucionalidades, novas maneiras de administrar os territórios e trocas na sociedade”, afirma.

Com a lei promulgada em 2010, o governo de Chávez institucionalizou uma forma de organização que não era comum no país. A ideia era descentralizar o poder Executivo para o que passou a ser chamado constitucionalmente de Poder Popular. Segundo Douglas Altuve, a popularidade de Hugo Chávez foi fundamental para a promulgação da lei em 2010.

“O presidente Chávez foi muito popular nas bases. No momento em que foi promulgada essa lei, a sua aprovação era de quase 70%. Isso faz com que o presidente confie mais no povo como ente que exerce diretamente o poder e nas necessidades que eles têm. O governo de Chávez dá muita importância para isso. Por exemplo, na cidade de Caracas quem melhor sabe as necessidades do povo é a comunidade organizada sobre questões de água, luz, comunicação, alimentos”, afirma. 

A ideia de um Estado Comunal passa pela gestão do Estado por uma Federação Comunera, que seria uma estrutura que reúne as comunas do país.O objetivo é que o governo seja administrado de baixo para cima, no qual a decisão dos conselhos comunais teriam peso na decisão coletiva da Federação. 

Segundo Felipe Banega, toda a articulação da União Comunera tem como meta a construção de um Estado Comunal. “Não planejamos que a União Comunera seja o fim do nosso processo político, mas seja uma ferramenta para o nosso fim que é o Estado Comunal”, disse.

Edição: Lucas Estanislau