Paraná

DIREITOS HUMANOS

Viva a memória de Antônio Tavares Pereira

Vitória histórica: lutar não é crime, movimento social não é organização criminosa, reforma agrária é política pública.

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Projetado por Niemeyer, o monumento homenageia as vítimas da luta pela reforma agrária. - Foto: Wellington Lenon

Com informações do MST.org.br
Por Claudio Oliveira e Ayala Ferreira*


Antônio Tavares Pereira foi pai de cinco filhos, fruto do casamento com Maria Sebastiana. Juntos, conquistaram o direito à terra lutando pela reforma agrária no Município de Candói, região centro-sul do Paraná. O sonho justo de um pedaço de chão para cultivar alimentos, sustentar a família e ter uma vida digna, logo se mostrou impossível sem luta. Sabemos que cada história é única, mas cada Sem Terra sabe que nessa parte somos todos e todas iguais.

Em mais um episódio dessa luta, o dia 02 de maio do ano 2000 se tornou um marco na luta pela terra no Paraná. Mais de 2 mil agricultores e agricultoras Sem Terra, assentados e acampados de várias regiões do estado, incluindo dezenas de crianças, adolescentes e idosos, se dirigiam à Curitiba com uma pauta extensa de luta pela reforma agrária, quando foram barrados pela Polícia Militar em uma ação ilegal e extremamente violenta.

Em via pública, assassinaram Antônio Tavares, aos 38 anos. Os algozes omitiram socorro, fraudaram o processo alterando a cena do crime, agrediram moralmente e usaram força extrema (munição letal), ferindo com gravidade cerca de 300 pessoas, considerando o levantamento feito pela Comissão Pastoral da Terra logo em seguida do massacre. Houve cerceamento dos direitos fundamentais de liberdade de locomoção, reunião e manifestação. As mulheres eram ofendidas com palavrões misóginos e sexistas, centenas foram detidas e detidos sem flagrante delito ou ordem judicial, outros tantos nos hospitais públicos de Campo Largo e Curitiba, com boas exceções, quando não omitiram socorro, humilharam e ofenderam diversos feridos.  

Para reprimir o povo Sem Terra, o Estado utilizou de um efetivo policial fortemente armados, cães, bombas de efeito moral. Fotografias: Arquivo APP Sindicato

Às margens da rodovia, moradores de comunidades da periferia de Campo Largo testemunharam tudo e foram solidários, gerando muitos relatos de acolhimento, cuidado com feridos e ajuda a manifestantes perdidos. Os amigos e amigas do MST e militantes da reforma agrária e outras lutas, também foram imprescindíveis. Nas delegacias, para garantir os direitos dos presos ilegais, nos hospitais cuidar dos feridos, nas ruas encontrar os perdidos e nas autoridades, para cobrar providências.

Foi como uma emboscada. Praticamente todos os ônibus haviam sido abordados e rigorosamente revistados logo nos primeiros postos da Polícia Rodoviária, ainda próximos de seus locais de origem. Apreenderam diversas ferramentas de trabalho, utensílios de cozinha e nenhuma arma. Se o objetivo fosse impedir o povo de entrar em Curitiba, bastava fazer isso próximo dos locais de partidas. No entanto, agiram para receber os trabalhadores com extrema violência, exatamente como fizeram.

Trata-se de um período em que toda violência foi arquitetada. O ex-governador Jaime Lener ordenava despejos violentos, promovidos durante a madrugada e, sob seu governo, a polícia militar espionou ilegalmente militantes, perseguiu agricultores acampados e assentados e promoveu diversos abusos e violências em todas as regiões do estado, principalmente na Região Noroeste. No Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio e das Políticas Governamentais de Violação dos Direitos Humanos no Estado do Paraná, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e diversas oraganizções denunciaram 16 assassinatos, 7 casos de tortura, 478 prisões, 323 feridos, 45 ameaças de morte e 131 ações de despejo ilegais.

Nas Defensorias Públicas, Ministério Público e Poder Judiciário, poucas repartições se importaram e serão sempre muito bem lembradas, mas não é possível ignorar toda essa violência ser invisibilizada e arquivada, enquanto as vítimas eram perseguidas, ameaçadas, agredidas e mortas, sem dizer que foi um silêncio condizente. No mesmo período e contexto, uma juíza participou de escutas ilegais de membros do MST, levando à condenação do Estado Brasileiro na  Corte Interamericana de Direitos Humanos da - Organização dos Estados Americanos, a OEA.

Também, no mesmo período e contexto, o trabalhador rural Sem Terra, Sebastião Camargo, foi assassinado covardemente com um disparo de espingarda calibre 12, enquanto estava deitado de bruços e rendido. Denunciado pelo Ministério Público, condenado 3 vezes pelo Tribunal do Júri, a Primeira Câmara do Tribunal de Justiça do Paraná anulou todos os vereditos. Um fato pitoresco sobre essa ação penal, é que por duas vezes os autos do processo foram extraviados no Tribunal e nenhuma explicação foi dada às vítimas. Não fosse pelo zelo e fiscalização do Ministério Público e das organizações de luta pelos direitos humanos, a responsabilização do assassino, Marcos Prochet, não seria possível. Corrigir essa barbaridade, agora cabe ao Superior Tribunal de Justiça.

Por outro lado, solidário ao MST por conta deste contexto de violência, Oscar Niemeyer, projetou um monumento em homenagem e memória a Antônio Tavares Pereira e a todas as vítimas da luta pela terra. A obra foi erguida às margens da rodovia-BR 277 no dia 01 de maio de 2001, no exato local do massacre, pelas forças de lutadores da reforma agrária. Toneladas de concreto e ferro suspendem a figura de uma pessoa com foice em punho, apontando para frente e para cima, se tornou um símbolo de luta e memória de Antônio Tavares Pereira e todos trabalhadores assassinados pela polícia ou milícias privadas durante esse período de extrema violência estatal.

Esquecidos pelo Estado Brasileiro, familiares de Antônio Tavares, militância do MST e militância de importantes organizações de Direitos Humanos, ingressaram na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A sentença chegou no último dia 14 de março de 2023 resultando na condenação do Brasil a reparar todas as vítimas, proteger a memória de Antônio Tavares com a manutenção do monumento no lugar onde está, assegurar que os crimes cometidos por militares contra civis, sejam processados e julgados na justiça comum, sendo incompetente a justiça militar.

É uma vitória grandiosa, sobretudo, para a memória histórica, em razão de reconhecer que lutar não é crime, movimento social não é organização criminosa e reforma agrária não é problema de polícia, é de política pública. A Corte também determinou que o Estado Brasileiro faça alteração legislativa para que a Justiça Militar não possa mais investigar e julgar crimes de militares contra civis. É um passo fundamental para a superação da impunidade.

A maior justiça possível para Antônio Tavares e todos os mártires da luta pela reforma agrária, é a democratização do acesso à terra. Ainda há muito que fazer, mas o MST venceu. Enquanto eles vão sendo cada vez mais esquecidos, lembrados apenas por seus atos de tirania, violência e morte, a luta cresceu e os assentamentos e acampamentos estão produzindo muitos alimentos, comercializados e partilhados, especialmente, durante toda pandemia recente, com as mesmas comunidades da periferia e organizações que nos socorreram.

Na luta recente em defesa da democracia brasileira, o MST esteve muito presente. Unido aos povos do campo, águas e florestas e aos movimentos sociais, sindicais e grande parte da sociedade, vencemos e os derrotamos novamente. Nos espaços institucionais dos três poderes da República, o povo Sem Terra venceu preconceitos, ganhou respeito e é reconhecido como movimento social legítimo. O monumento está na história em memória da luta de Antônio Tavares e toda militância Sem Terra. 

*Claudio Oliveira foi uma das vítimas do massacre da 277, em 2000, quando era adolescente. Atualmente é advogado, integrante do Coletivo de Direitos Humanos do MST pelo Paraná. 
*Ayala Ferreira é integrante da direção nacional do MST pelo Coletivo Nacional de Direitos Humanos. 

 

Edição: Lucas Botelho