Rio Grande do Sul

LITERATURA

Primeira Feira do Livro da Restinga descentraliza o acesso à leitura em Porto Alegre

Câmara Rio-Grandense do Livro e Ponto de Cultura Africanidade realizam evento nesta sexta-feira (26) e sábado (27)

Brasil de Fato RS | Porto Alegre |
Evento vai ofertar ampla gama de livros a preços populares e dar visibilidade a autores, artistas e coletivos culturais do bairro - Foto: Diego Lopes/Feira do Livro Porto Alegre

A Restinga foi escolhida para ser o primeiro bairro de Porto Alegre e receber uma feira do livro nos moldes da feira que ocorre há décadas no centro da cidade. A iniciativa de descentralização inédita promovida pela Câmara Rio-Grandense do Livro e pelo Ponto de Cultura Africanidade será realizada nos dias 17 e 18 de maio. Inicialmente seria realizada nos dias 26 e 27 de abril, mas o evento foi transferido por questões climáticas.

A proposta da 1ª Feira do Livro da Restinga é ofertar uma ampla gama de livros a preços populares e dar visibilidade a autores, artistas e coletivos culturais do bairro, que, com mais de 60 mil habitantes, é um dos mais populosos da Capital. Nesta edição de estreia, o patrono será o diretor e pesquisador de teatro Jessé Oliveira, fundador e diretor do grupo Caixa-Preta e pioneiro no desenvolvimento do teatro negro e contemporâneo gaúcho.

A iniciativa insere-se na programação do Abril Livro promovido pela Câmara Rio-Grandense do Livro. Será realizada na Av. Macedônia, próximo ao Centro de Comunidade Restinga (Cecores), das 9h às 18h nos dois dias. A programação terá contação de histórias, apresentações de dança, música, poesia e slam, rodas de conversa e oficinas. Além de tendas de autógrafos, de slammers e de escritores da Restinga (confira no final da matéria).

Janela para a produção literária da comunidade

Liderança comunitária e coordenador do Ponto de Cultura Africanidade, José Luís Ventura celebra a proposta da 1ª Feira do Livro da Restinga de divulgar o trabalho de escritores e escritoras anônimos. Conhecido como Mestre Ventura, ele afirma que o bairro tem uma potente produção literária que não entra no mercado e acaba não sendo conhecida.

“Estão inscritos na média de uns 50 escritores que têm livro digital e não conseguem imprimir. Tem também alguns escritores que têm livro físico mas não conseguem divulgar e vender, pela necessidade de ter um apoio de divulgação maior. Eles ficam dentro da comunidade vendendo seus livros de porta em porta, através de amigos. E muitos, aqueles que têm um livro digital, não conseguem vender porque não sabem como fazer para divulgar”, conta.

Mestre Ventura destaca ainda o desafio de realizar a feira na Restinga nos mesmos moldes da Feira do Livro de Porto Alegre, que neste ano chega à sua 70ª edição na Praça da Alfândega. Mas afirma que os escritores e parceiros culturais da comunidade têm participado ativamente e “estão muito entusiasmados”. Completa revelando que “escolas municipais, estaduais, escolas infantis e entidades estão aguardando o início da feira”.

Levar o livro a quem tem menos acesso

O presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, Maximiliano Ledur, destaca que o objetivo é levar o livro a uma população que historicamente tem menor acesso. “A Feira do Livro, democrática que nem a nossa, já tem um papel fundamental para a disseminação da cultura, para incentivar e disseminar o livro e a leitura para a sociedade. Mas descentralizar e levar para a periferia é mais importante ainda porque está disseminando a cultura em todas as regiões”, avalia.

Ele conta que a iniciativa busca “criar uma identidade, entender, escutar, desenvolver escritores e leitores também nas comunidades”. Para isso, ressalta que “nada melhor do que começar na Restinga, que tem uma população gigantesca, maior do que muitas cidades do Rio Grande do Sul”.

Segundo Ledur, a ideia inicial era fazer, durante o mês de abril, uma feira a cada ano em um local diferente. Mas o envolvimento da Restinga o leva a crer que o evento deve ser mantido anualmente no local. “Provavelmente ano que vem a gente tem a segunda edição lá, e aí a gente vai atrás de outra data para buscar também fazer em outra comunidade também de Porto Alegre”, antecipa.

A Feira do Livro da Restinga vai contar com bancas de vendas de livros com valores subsidiados, afirma o presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro. “Pra quem está participando e expondo os livros lá, editoras vão dar 50%, livrarias estão dando 20% e distribuidores estão dando 30%. Então é essa a ideia, levar livros. Não é levar livro ponta de estoque e sim levar lançamentos, com essa questão de também ser um livro mais acessível àquela população que no geral tem uma renda é menor”, diz.

Fortalecer a cultura na periferia

Ledur comenta que, durante a organização, conheceram muitos autores da Restinga que possuem livros comente no formato e-book. Já pensando em deixar um legado para o bairro, sonha em criar um mecanismo para que esses autores consigam ter seus livros publicados e, quem sabe, sejam lançados na edição de 2025. “Essa feira está sendo piloto para a gente avaliar esse tipo de situação, porque realmente tem muita gente que escreve, inclusive sobre a própria história dentro da comunidade. Então, isso vai ser legal da gente trazer, ampliar essas vozes, ampliar o alcance dessas histórias.”

Para ele, “é crucial fortalecer e disseminar a cultura em todas as regiões, estimular o hábito da leitura em todos os públicos e regiões”. Além disso, a organização visa o fomento do futuro, com o desenvolvimento economico do setor do livro e da escrita nas escolas. “A gente vai trabalhar as escolas dentro da comunidade, com escolas que vão visitar a feira”, pontua Ledur.

"Restinga é um propulsor da cultura de Porto Alegre"

Jessé Oliveira conta estar “muito lisonjeado” pelo convite para ser o patrono desta primeira feira descentralizada de Porto Alegre. “Especialmente por ser na Restinga, um barco que segue no meu coração, cheio de gente maravilhosa criativa e trabalhadora que impacta a cidade positivamente”, afirma, lembrando que já foi morador do bairro de 1980 até 1999.

Ele avalia que, “a despeito de não haver políticas políticas públicas permanentementes para beneficiar os bairros periféricos e, aqui, no caso, a Restinga, a gente pode dizer que a Restinga é um propulsor da cultura de Porto Alegre”. Exemplifica com o Carnaval, lembrando que o bairro tem duas importantes escolas de samba. "Mas a Restinga não é só carnaval", pondera, lembrando de vários músicos que tocam na noite de Porto Alegre.

Destaca também que “a Restinga é um bairro que lê muito”, trazendo a memória da época em que morava no bairro e ia lendo durante a viagem até a faculdade, que durava uma hora de ônibus. “E não é só eu, quantos artistas de teatro são oriundos da Restinga? E assim a gente poderia ficar citando várias áreas, como o campo acadêmico. Nós temos inúmeras pessoas oriundas da Restinga que como eu estão fazendo ou já fizeram seus doutorados, dando aula no ensino superior ou no ensino médio. Não importa, é um bairro extremamente cultural.”


Jessé Oliveira e Mestre Ventura durante participação na Rádio Negritude para divulgar a 1ª Feira do Livro da Restinga / Foto: Divulgação/Africanidade Ponto de Cultura

Do livro ao teatro

Sobre o convite para ser patrono, Oliveira acredita não foi meramente por sua ligação afetiva com a Restinga, mas por uma trajetória marcada por seu trabalho como criador no campo do teatro e com extensões no campo da literatura. “A minha ligação com a literatura é inclusive mais antiga que o teatro. Eu estou vinculado ao teatro desde 1989, mas antes disso eu era daquelas pessoas interessadas em escrever poesia.”

Seu primeiro livro, “Variações sobre o mesmo tema”, foi independente e de poesia, com lançamento em 1992 no Clube de Cultura, em Porto Alegre, “um espaço de resistência artística histórica”. Segundo ele, o evento foi “um prenúncio do que a arte ia se tornar posteriormente, essa coisa de encontros estéticos”, com a leitura dos seus poemas junto com músicos de rock tocando guitarra e capoeiristas tocando atabaque e berimbau.

Antes disso, já tinha publicado em coletâneas e teve suas poesias circulando pela capital gaúcha ao vencer o projeto Poema nos Ônibus. Depois vieram outros livros. Como em 2010, no campo da teoria teatral, “Memória do Teatro de Rua em Porto Alegre”. Em 2019, organizou o livro “Hamlet Sincrético, em busca de um teatro negro”, que traz alguns textos seus também. E tem participado de inúmeras coletâneas por meio de capítulo de capítulo de livros e de periódicos acadêmicos.

Alem disso, em sua carreira de diretor, também foi autor de alguns textos que encenou. “Então a literatura anda ao meu lado no meu trabalho de artista de teatro, de artista da cena”, destaca. E anuncia novidades - uma publicação de poesia de haikai, que está no prelo e deve sair no segundo no segundo semestre.

“Eu acho que essa minha trajetória ligada ao teatro negro, em especial ao Grupo Caixa Preta, que é um dos grupos pioneiros do moderno teatro negro gaúcho, com inserção nacional, internacional, e muitos prêmios... o gérmem desse meu desejo de fazer teatro negro estava também no meu período de vivência na Restinga. Exatamente por ser um bairro majoritariamente com população negra, um bairro periférico, cheio de contrastes sociais, econômicos, culturais.”

Oliveira celebra a realização da feira no bairro como forma de valorizar toda essa produção artística e cultural latente. “A Restinga é uma diáspora de pessoas negras que foram marginalizadas e deslocadas do centro, especialmente ali da Ilhota e de outras regiões que foram deslocadas para lá.” O que, segundo ele, “produziu uma amálgama social e cultural muito importante”.

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Edição: Katia Marko