Por Maria Clara de Lima Santos*, Cristiana Coutinho Duarte** e Patricia Geittenes Tondelo***
No atual cenário de mudanças climáticas, o Recife ocupa a preocupante 16ª posição entre as cidades mais vulneráveis do mundo, segundo o IPCC (2007). As causas dessa alta vulnerabilidade incluem condicionantes naturais, como a baixa altitude, mas também fatores que têm relação direta com o processo de urbanização e com as condições socioeconômicas das populações, como os altos índices de pobreza e precariedade nas condições de moradias. De acordo com os dados do Instituto Cidades Sustentáveis (2024), Recife recebeu o título de 2ª capital mais desigual do Brasil, concentrando cerca de 11% da população abaixo da linha da pobreza.
As alterações do clima global têm trazido como consequência direta o aumento da frequência de ondas de calor extremo, alteração no nível dos oceanos, secas prolongadas, perdas de espécies e maior recorrência de chuvas intensas. Estes eventos de chuva, ditos “extremos”, são caracterizados na literatura por episódios de desvio positivo ou negativo do quantitativo esperado de chuva num período de tempo curto - logo, são episódios considerados excepcionais.
Os impactos desses fenômenos no meio urbano e na vida das pessoas têm sido tão alarmantes ao ponto de despertar debates sobre a adequada denominação para se referir a estes acontecimentos. No caso das chuvas no Recife, não se pode mais considerá-las extremas, pois a sua frequência já as tornou episódios, que de certa forma, são tanto esperados como tragicamente anunciados.
Aliado a isso, temos um panorama brasileiro, sobretudo a nível municipal, de escassez de programas, planos e projetos de mitigação que visem reduzir as emissões dos gases causadores do efeito estufa; e também, de adaptação para melhor preparar os territórios sensíveis e periféricos para lidar com os impactos das alterações no clima.
No Recife, o principal plano para o enfrentamento das alterações em curso é o Plano Local de Ação Climática (PLAC) produzido em parceria com o ICLEI, uma rede mundial de governos locais pela sustentabilidade. Recentemente, o governo federal também tem realizado esforços no lançamento de programas na área, como o Plano Clima e o Projeto Cidades Verdes Resilientes.
No entanto, o que se observa é que muitos destes planos de planejamento climático urbano não atingiram os resultados esperados, devido à ausência ou à falha no processo de construção participativo, o que os torna distantes da realidade local das populações diretamente envolvidas e prejudicadas, que são as populações mais vulneráveis.
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De fato, a grande maioria destes planos são marcados pela invisibilidade da participação das populações de comunidades tradicionais (favelas e periferias), que há tempo vêm realizando sua autogestão frente à omissão do poder público aos seus problemas cotidianos, incluindo os relativos ao clima. Estas comunidades constroem redes de governança comunitárias, partindo das problemáticas identificadas por sua vivência nestes territórios sensíveis ao clima, como os morros, margens de rios e alagados.
Diferentemente do olhar técnico e político do poder público, a percepção destas populações acerca das questões climáticas é respalda “no sentir na pele” os efeitos das alterações climáticas. Assim, o conceito de governança comunitária parte do pressuposto de que cada comunidade possui a “autopercepção” e uma dinâmica própria de gestão que pode ser articulada à participação social na tomada de decisões que influenciam na vida de seus membros.
Nesta perspectiva, elencamos alguns exemplos de planos e projetos que consideram as especificidades locais e a participação destas populações, de forma integral ou parcial, em sua formulação e devem ser objeto de estudos dos futuros gestores municipais.
Na esfera estadual, destacamos o projeto “Nordeste pela resiliência climática”, desenvolvido pela ONG Visão Mundial, tendo como meta reduzir os riscos de desastres nas comunidades pobres por meio de atividades e ações de prevenção continuadas, que visam estimular a aproximação entre o poder público e as comunidades.
Na escala local, foi lançada em 2024 a Rede Gera (Governança para o Enfrentamento ao Racismo Ambiental). Esta iniciativa foi liderada pelo Instituto Intercidadania, Gris Solidário, Cores do Amanhã, Caranguejo Tabaiares e Tenda Caboclo Flecheiro D’Araroba, que são organismos que já possuem um histórico de atuação em territórios vulnerabilizados da Região Metropolitana do Recife (RMR).
A Rede Gera tem o objetivo de implementar estratégias de adaptação em territórios específicos de áreas ribeirinhas buscando apoiar, sobretudo, ações de incidência política originárias da sociedade civil. Além destas iniciativas, temos a “Comunidades pelo Clima” que lançou uma campanha com as ONGs Somos Todos Muribeca, Meu Recife e Comissão Ambiental de Jaboatão, cujo enfoque também envolve a incidência na política metropolitana através da pressão popular sobre vereadores e prefeitos da RMR, através de manifestações que cobram por mitigação e adaptação climática advindas de iniciativas das populações periféricas.
Com um viés institucional, destacam-se ações desenvolvidas por professores e pesquisadores da UFPE vinculadas a projetos de extensão universitária que procuram promover o protagonismo das comunidades, como o projeto de extensão TIG-Periferia. Este projeto tem por objetivo fortalecer capacidades de monitoramento e mapeamento participativo voltados ao processo de autogestão frente às mudanças climáticas.
Desde sua criação, o TIG vem realizando oficinas de letramento climático em comunidades localizadas em áreas de risco e mapeamento junto aos moradores para dar subsídio à elaboração de planos comunitários de ação climática. Recentemente, o TIG e o Observatório da Metrópoles Núcleo Recife estão trabalhando na atualização e disponibilização pública do Sistema de Informações Geográficas dos Assentamentos Precários da Região Metropolitana do Recife SIGAP (RMR), um instrumento de apoio e planejamento dos assentamentos precários e das Zonas Especiais de Interesse Social, ZEIS.
Ademais, destacam-se ações recentes do Governo Federal que também são importantes de serem destacadas, como os diversos programas e projetos desenvolvidos pela Secretaria de Periferias do Ministério das Cidades, como o financiamento dos Planos Municipais de Redução de Risco (PMRR) e o Mapa das Periferias, que busca dar prêmios às de iniciativas comunitárias engajadas no enfrentamento da desigualdade socioespacial e na transformação dos territórios periféricos.
Por fim, outro importante exemplo é a atuação do CEMADEN Educação e o projeto “Dados à Prova D’água”, que busca ampliar a coleta de dados de inundações com o registro de chuvas a partir de pluviômetros de garrafa PET construídos nas escolas e nas comunidades localizadas em áreas de risco. Esses dados servem para desenvolver modelos de previsão de inundações mais precisos.
Em ano de eleição, a sugestão que deixamos aos futuros gestores municipais é que as políticas públicas de enfrentamento climático não devem mais ser realizadas de maneira genérica. É preciso que o processo de construção dos instrumentos políticos se dê de forma horizontal, realizando a escuta e considerando também os saberes orais e tradicionais de quem a tempos, convive, resiste, e acima de tudo, “sobrevive” nesses territórios considerados vulneráveis ao clima.
Assim se torna essencial que se garanta às comunidades afetadas a voz e a participação social na formulação dos novos planos, programas ou projetos relacionados ao fortalecimento e resiliência às mudanças climáticas. Além de assegurar que diversas ações que estão surgindo sejam integradas para que não haja sobreposição de esforços, tecendo, assim, essa ampla rede de comunidades e instituições no enfrentamento dos impactos provocados pelas mudanças climáticas e fortalecimento da resiliência.
*Maria Clara de Lima Santos é geógrafa e mestranda do programa de pós graduação em Geografia (PPGEO da UFPE), ativista socioambiental e climática e articuladora nacional da Associação de Jovens Engajamundo.
**Cristiana Coutinho Duarte é professora adjunta do Departamento de Geografia da UFPE, coordenadora do TIG-Periferia e pesquisadora do Observatório das Metrópoles (Núcleo Recife) e do Grupo de Estudos em Climatologia Tropical e Eventos Extremos (Tropoclima).
***Patricia Geittenes Tondelo é arquiteta e urbanista, doutoranda no programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU da UFPE) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles (Núcleo Recife).
Os artigos de opinião não necessariamente refletem a posição editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vinícius Sobreira