Por Rosa Maria Cortês de Lima* e Jorge Vinicios Silva Gondim**
As cidades contemporâneas são marcadas, entre outros fatores, pelo adensamento populacional e concentração de bens e serviços públicos e privados em um mesmo espaço. Tais características, presentes no país, possibilitam refletir sobre as problemáticas decorrentes, ao se considerar que a intensidade do adensamento expressa severas contradições e expõe desigualdades de produção e reprodução do espaço nas cidades e nas metrópoles brasileiras.
A Região Metropolitana do Recife (RMR), formalizada através da Lei Complementar nº 14, no dia 8 de junho de 1973, é composta por 14 municípios. São eles: Recife, Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Paulista, Abreu e Lima, Cabo de Santo Agostinho, Camaragibe, Igarassu, Moreno, São Lourenço da Mata, Itapissuma, Ipojuca, Ilha de Itamaracá e Araçoiaba.
Fatores históricos, sociais, econômicos, políticos e culturais contribuem para que a metrópole recifense seja marcada por velhas e novas contradições. Ao examinar as formas de ocupação e apropriação do território para uso habitacional, percebemos a permanência e o aprofundamento de desigualdades socioespaciais e territoriais - especialmente nas últimas décadas.
As desigualdades se manifestam no campo da renda, concentrada nas mãos de poucas pessoas; na falta de acesso à terra e à habitação; na ausência ou precariedade de infraestrutura, como o saneamento básico – que engloba acesso a água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana, coleta e manejo dos resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas pluviais –; e no acesso à educação e à saúde de qualidade, à assistência social entre outros.
Em relação à habitação, relembramos Josué de Castro ao narrar as condições objetivas dos moradores dos mangues na cidade do Recife, nos seus escritos sobre “homens e caranguejos” - Josué percebe a semelhança entre ambos em suas condições. A imagem utilizada pelo autor é relevante para o entendimento das problemáticas do tecido urbano recifense e sua relação com os municípios da RMR.
O Instituto Cidades Sustentáveis (ICS), ao construir o Mapa da Desigualdade entre as Capitais Brasileiras, constatou que o Recife era a 2ª capital mais desigual do país, abaixo apenas de Porto Velho (RO). Além disso, o documento aponta para o desemprego – que atingia pouco mais de 15% da população – e a miséria – com 11,2% da população vivendo abaixo da linha da pobreza.
A questão habitacional também reafirma as desigualdades socioeconômicas e socioespaciais, expondo elementos desafiadores a serem enfrentados pelo Estado, no contexto das sociedades dependentes e periféricas, como são caracterizadas as cidades latino-americanas.
A questão habitacional guarda relações diretas com o processo de formação social e histórica das cidades brasileiras, repercutindo diretamente em diferentes direitos, como o direito ao saneamento básico, à saúde, à assistência social, à educação, ao lazer. Apesar de assegurados na Constituição Federal de 1988, não são direitos efetivados adequadamente enquanto políticas públicas.
De acordo com o levantamento mais recente da Fundação João Pinheiro (FJP), em 2024, o déficit habitacional total da Região Metropolitana do Recife é de 96 mil 959 unidades habitacionais, sendo quase a totalidade (98,8%) em áreas urbanas. O quadro ilustra as fraturas entre as distintas formas de acesso à habitação nessa metrópole e a importância de políticas públicas permanentes e efetivas de financiamento por parte do Estado, visando assegurar o acesso a moradia digna.
A importância da questão da habitação é confirmada pela ampliação da disponibilidade de benefícios eventuais, classificados como auxílio-moradia ou aluguel-social, alternativas de caráter temporário para responder à latente problemática habitacional para a população de baixa renda. Esta população vive diariamente em situação de risco – muitas vezes emergenciais – e não dispõe de renda para garantir a moradia pela via das relações do mercado no contexto metropolitano.
O Recife é um dos municípios que paga auxílio-moradia, voltado para famílias em situação de vulnerabilidade social, para locar imóveis para fins de moradia. Mas também é pago aos moradores de imóveis que foram destruídos, avariados permanentemente ou estão interditados pela Defesa Civil municipal. O valor atual do auxílio é de R$ 300 mensais.
Além do auxílio-moradia, o Recife também instituiu o auxílio-acolhida, situado na esfera da assistência social como benefício eventual, direcionado ao público atendido pelos distintos programas, projetos e serviços da rede de assistência social no município.
Criados enquanto resposta imediata aos crescentes problemas urbanos, esses auxílios incorporados pelo Estado compõem a dinâmica de produção e da reprodução do espaço urbano como alternativa para apaziguar e mediar conflitos por intermédio da oferta de valor monetário, hoje insuficiente para responder à necessidade de alugar uma habitação.
Parte dos benefícios são disponibilizados por meio de secretarias municipais de assistência social e qualificados nas respectivas leis municipais de benefícios eventuais, tal como definido na Lei Federal nº 8.742/1993 – Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), de 1993 – o que causa certa dificuldade de entendimento quanto às competências em relação às respostas aos distintos problemas habitacionais.
Essa situação pode ser constatada em outras cidades da RMR, como Camaragibe, Abreu e Lima e Araçoiaba, que adotam o termo aluguel social e direcionam esse benefício às famílias impactadas por eventos considerados atípicos, como alagamentos, desmoronamentos e incêndios. Em todos esses locais as secretarias municipais de assistência social organizam os fluxos e operacionalizam as normas. Os valores são também de R$ 300 por família- com exceção de Araçoiaba.
No caso de outros municípios do RMR que também adotam a nomenclatura de auxílio-moradia, como Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Paulista e Moreno, as leis e decretos que formalizam e direcionam esse benefício também o situam no campo da assistência, inserindo esse auxílio como um dos benefícios eventuais aplicáveis nesses territórios.
Merece destaque, ainda, a constante alteração dos valores destinados ao pagamento ao auxílio-moradia ou aluguel social. Mais uma vez tomando o Recife como exemplo, verifica-se que o benefício foi criado em 2001, por ocasião das fortes chuvas que atingiram a capital pernambucana. Naquele momento, o valor estabelecido por família era de R$150,00, passando, ao longo dos anos, a R$ 200,00 (2013) e R$300,00 (2022), permanecendo em vigor. O que foi seguido por outras cidades, como Jaboatão e Olinda.
Frente à urgência da questão habitacional no Recife e na Região Metropolitana, assim como da adoção das diferentes modalidades de benefícios de caráter temporário - mas quena prática são pagos por um período longo -, fica evidente a importância de definir e de implementar soluções para a questão da habitação.
Tais soluções e desafios situam-se no estabelecimento de política habitacional efetiva, contínua, enquanto política de Estado, assegurando a participação democrática da sociedade e dos movimentos sociais articulados com as populações inseridas nessas modalidades de benefícios, no sentido de serem fortalecidas as lutas sociais e assegurar o direito à habitação e à cidade.
*Assistente Social (UFRN), mestre em Serviço Social (UFPE) e doutora em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ). Professora Titular da UFPE e do programa de pós-graduação em Serviço Social. Líder do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Habitação e Saneamento Ambiental (NEPHSA) e membro da Rede Nacional INCT/Observatório das Metrópoles.
**Assistente Social, mestre e doutorando pelo programa de pós-graduação em Serviço Social (UFPE). Pesquisador da Rede Nacional INCT/Observatório das Metrópoles.
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Edição: Vinícius Sobreira