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A única mulher negra eleita vereadora do Recife: um desafio de representatividade, resiliência e muita luta

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Para a legislatura que se inicia em 2025, a Câmara do Recife terá, entre suas 37 cadeiras, apenas 8 mulheres, sendo uma única negra - Divulgação/Câmara do Recife
Nossos passos vêm de longe e nosso caminho foi construído com muito suor e lágrimas

Nesse novembro negro, gostaríamos de iniciar essa coluna discutindo os enormes desafios que nós, mulheres negras, enfrentamos para participar do processo democrático.

Incialmente, gostaria de me apresentar. Sou Jô Cavalcanti, mulher negra, feminista, mãe, militante do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Sem Teto (MTST), nascida e criada no Morro da Conceição, periferia da zona norte do Recife. Sou ambulante e atuei no sindicato dos trabalhadores(as) do comércio informal.

Em 2018, fui eleita pela primeira vez, com mais de 39 mil votos, para ser codeputada da mandata das Juntas (Psol), o primeiro mandato coletivo da história da política pernambucana. Agora, graças aos mais de 7 mil votos da população recifense, serei vereadora e única mulher negra a ocupar esse espaço na Câmara Municipal para a próxima legislatura. 

Estaremos juntas e juntos mensalmente, a convite da Brasil de Fato, dialogando sobre diversos temas. Deixo aqui meu imenso obrigada pelo espaço, porque tendo em vista o tamanho desafio que aceitei cumprir, cada lugar e oportunidade de diálogo reforça e sedimenta um caminho de fortalecimento não só para mim, mas para todas as lutas que represento e que ecoam por todos os mandatos feministas e antirracistas que mulheres negras representam pelo país.

Pois bem, para iniciarmos nosso diálogo, nesse mês de tamanha importância para o povo negro - o da Consciência Negra - vou tratar sobre o tema e trazê-lo também para a perspectiva da nossa política local. A data nacional de 20 de novembro foi escolhida para homenagear Zumbi dos Palmares, líder de um dos maiores quilombos já existentes no Brasil.

Vale lembrar que aqui na área central do Recife, no Pátio do Carmo, há uma estátua em homenagem a Zumbi, já que o mesmo teve sua cabeça exposta como parte de execução da pena capital recebida por ele, punido por sua insurgência e liderança da resistência do povo negro escravizado.

É importante analisarmos o quanto o Estado Brasileiro está em dívida com o povo negro desse país. Falamos diariamente sobre o extermínio em curso de uma juventude, ora encarcerada, ora vitimada pela bala direta do Estado ou indireta do crime organizado.

Também falamos da grande maioria de mulheres, cis e trans, que sofrem violência doméstica, que têm os menores salários, que estão em situação de vulnerabilidade, que são as maiores vítimas da ausência de justiça reprodutiva e do racismo obstétrico. E o que encontramos em comum? A cor negra na pele.

Recife: Capital da Desigualdade 

Recife é a segunda capital mais desigual do país, de acordo com o Mapa das Desigualdades das Capitais, do Instituto Cidades Sustentáveis, publicado em março deste ano. Para chegar a esse ranking, vários indicadores são considerados, como erradicação da pobreza e da fome; saúde e educação de qualidade; igualdade de gênero; água potável e saneamento; trabalho digno e crescimento econômico; entre outros.

Assim, o Recife tem 11,2% de sua população abaixo da linha da pobreza, sendo também a 2ª pior capital nesse ranking lamentável. E, segundo o IBGE, um quarto das moradias na cidade não conta com descarte adequado de esgotamento doméstico, além de apresentar a 2ª maior taxa de desocupação do Brasil, com 15% da população desempregada.

Nesta cidade que acima lhes apresento, a maior população residente é formada por mulheres. E mais de 60% da população se declara negra. Assim, Recife é construída sobre os ombros de trabalhadoras e trabalhadores negros, com um número significativo de informais.

Essa classe trabalhadora é ainda marcada pela violência policial em suas favelas e morros e pela ausência de programas eficazes de saúde, que garantam acesso à justiça reprodutiva de pessoas com útero; e de educação, diminuindo a evasão escolar e garantindo creche em tempo integral. 

Entre tantos dados importantes, o IBGE trouxe uma nova realidade no número de habitantes da cidade do Recife. Já não somos mais de um milhão e meio, fator este que assegurava 39 assentos na Câmara de Vereadores(as). A partir de 2025 seremos 37 parlamentares, sendo apenas 8 mulheres - uma a mais que na atual legislatura. Em percentuais, saímos de 17,9% para 21,6% da Câmara.

Com esse percentual de mulheres eleitas vereadoras, não conseguimos aumentar a representatividade de mulheres negras. De 2020 para cá, permanecemos com apenas uma mulher negra ocupando esse espaço - sempre da mesma legenda, o PSOL, vale ressaltar.

A sub-representatividade de mulheres negras ainda é a realidade predominante nos espaços políticos, mesmo com a alteração da Lei dos Partidos Políticos e a Emenda Constitucional 111/2021, que procuram promover a inclusão de pessoas negras e mulheres no processo eleitoral. 

Além da realidade local: a falsa democracia racial e as armadilhas dos novos tempos

Como resposta à pressão social, principalmente dos movimentos negros, surgiu o sistema de cotas raciais como políticas afirmativas voltadas à inclusão das nossas e dos nossos e como instrumento necessário à mudança real e efetiva para os que formam a maior parte da população do Brasil.

Para o acesso à institucionalidade do serviço público, através de concursos, essa conquista quase foi perdida esse ano porque parte dos parlamentares entendiam que a Lei de Cotas, Lei 12.990 de 2014, já tinha servido ao seu propósito desde 9 de junho de 2024, quando se cumpriu o prazo de 10 anos. Diante do risco de perda, não conseguimos ampliar de 20 para 30 o percentual de vagas destinadas à população negra, mas a lei foi prorrogada por mais 10 anos.

Já sobre as cotas de gênero nos partidos, a promulgação de uma emenda constitucional em 2022 obrigou os partidos a destinarem 30% do fundo eleitoral para candidaturas femininas. A cota, entretanto, não é o suficiente para garantir que os partidos alavanquem as candidatas – nem tampouco sejam punidos caso não cumpram a lei.

Em agosto deste, ano o Congresso Nacional perdoou R$ 23 bilhões em dívidas de partidos que descumpriram as regras eleitorais, inclusive as cotas de gênero. Tal emenda, que ficou conhecida como “PEC da Anistia”, também desobrigou as siglas a repassarem valores proporcionais ao número de candidaturas de pessoas negras, passando a fixar esse valor em 30%.

Por todo o contexto apresentado, é possível entender o porquê da dificuldade de presença de pessoas negras tanto nas disputas como na ocupação dos espaços de poder. Acrescente-se a isso a nossa construção enquanto sociedade machista, patriarcal e racista. É difícil falar em disputa quando aparentemente se dá um direito e a efetividade é questionada pelo próprio poder que o garantiu.

No Brasil, se finge ter uma democracia racial. Na realidade da maioria das pessoas negras as demandas urgentes são questões básicas, como garantir a comida no prato, o teto para morar e o sustento da família. Ou seja, os lugares de partida ainda estão muito distantes. Quem larga nessa corrida tendo todas essas preocupações, não pode chegar ao mesmo lugar e nas mesmas condições de uma pessoa que não as têm.

Dessa forma, o nosso papel na Câmara Municipal do Recife não será fácil. Para nós, a cobrança chegará de forma mais rápida e contundente. Mas sabemos da responsabilidade desse espaço. E a pergunta que fica é: quando é que as coisas foram fáceis para nós, mulheres negras?

Reafirmamos nosso compromisso na atuação combativa, coerente às nossas bandeiras feminista, antirracista, antiLGBTfóbica, anticapacitista e popular - e tendo os interesses da classe trabalhadora na centralidade do debate. Para isso, contamos também com a atuação dos movimentos que nos confiaram essa missão.

Nossos passos vêm de longe e nosso caminho foi construído com muito suor e lágrimas. Para nós, o êxito é que é a exceção. Mas o esperançar sempre nos mobilizou. Resistimos e saímos juntas, vitoriosas e mais firmes de estarmos do lado certo da história. Fé na luta!

Edição: Vinícius Sobreira