Pernambuco

entrevista

Impedido até de pisar na prefeitura, Marcos Xukuru quer cidadãos decidindo orçamento

O cacique foi eleito prefeito de Pesqueira (PE), mas ainda não conseguiu assumir o Executivo

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Marcos Luidson, o "Cacique Marquinhos", lidera o povo Xukuru da Serra do Ororubá, em Pesqueira - Ororubá Filmes

No último mês de novembro os eleitores do município de Pesqueira, na região agreste de Pernambuco, elegeram prefeito um cacique. Marcos Luidson é cacique do povo Xukuru do Ororubá, nação indígena que reúne, em suas 24 aldeias, cerca de 20 mil (dos quase 70 mil) habitantes de Pesqueira. Apesar de eleito, Marcos Xukuru não conseguiu assumir a prefeitura. A agora ex-prefeita, derrotada no pleito, acionou a Justiça acusando o adversário de estar enquadrado na Lei da Ficha Limpa e, portanto, inelegível. Quem assumiu a prefeitura interinamente foi o presidente da Câmara de Vereadores. No momento o cacique está impedido até mesmo de visitar a prefeitura, já que foi acusado de estar despachando como prefeito.

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O motivo pelo qual Marcos Xukuru supostamente se enquadra na Lei da Ficha Limpa é uma condenação por incêndio ou dano ao patrimônio privado. O caso é de 2003, poucos anos após o assassinato de seu pai, o Cacique Chicão; e do cacique posterior, Chico Quelé; ambos os assassinatos encomendados por fazendeiros locais. A situação leva “Marquinhos”, com pouco mais de 20 anos, a assumir o posto de cacique. E em 2003 é sua vez de sofrer um atentado, do qual ele escapa ferido, mas com vida. Outros dois indígenas morrem. O povo Xukuru se revolta, ateia fogo em casas e carros dos envolvidos no atentado. Marcos nega ter participado da “vingança”, mas foi condenado mesmo assim. O Brasil de Fato Pernambuco entrevistou o prefeito eleito para tratar destes e outros temas relacionados a sua atuação política.

>> Leia também: Povo de Pesqueira elege Cacique, mas Justiça ainda não o deixou assumir prefeitura

Brasil de Fato Pernambuco: Sabendo do histórico de preconceito contra os povos indígenas, o que o encorajou a se candidatar a prefeito? Em que momento você avaliou que poderia ser uma liderança política não só do seu povo Xukuru, mas do município de Pesqueira?

Cacique Marcos Xukuru: Sempre participei ativamente de toda a luta e trajetória de conquistas do meu povo, do nosso território, ao lado do meu pai, do Pajé e demais lideranças Xukurus. Me tornei cacique ainda muito jovem, num momento de muito enfrentamento, não foi fácil. O trabalho prestado e os compromissos que assumi com nossos ancestrais, a missão que assumi – e não é através de eleição, de escolha pela comunidade, mas algo do mundo cósmico e religioso. Naquele momento que assumi essa liderança, eu entreguei minha vida à luta do povo Xukuru.

No nosso município o povo Xukuru sempre teve participação na política institucional, partidária, como coadjuvantes, contribuindo, já que temos vereadores Xukurus. Sempre nos posicionamos acreditando na mudança para um novo momento político para Pesqueira. Porém, começamos a perceber que os grupos políticos se revezavam e as mudanças não aconteciam. Nas últimas eleições (2016) indicamos uma pessoa para a disputa contra o então gestor Evandro Chacon (PSB) e a agora ex-prefeita Maria José (DEM) [o indicado pelos Xukurus foi o agricultor Evandro Junior (PROS), que teve 26% dos votos, foi derrotado e considerado inelegível].

 Após a disputa de 2016 alguns amigos começaram a me provocar, dizendo que eu era a liderança que poderia fazer o enfrentamento àquele grupo político. Depois lideranças políticas também passaram a falar isso. Pensei muito se queria isso na minha vida. Eu nunca tinha pensado sobre, já que minha missão era com o meu povo e em Brasília representando os indígenas. E passei a refletir como cidadão pesqueirense, filho da cidade, entendendo a responsabilidade e dificuldade de administrar uma cidade do porte de Pesqueira. E avaliei que assim como assumi a missão de cuidar e defender a Nação Xukuru, entendi que ali era um chamado para contribuir como cidadão pesqueirense.

BdF PE: Você se considera de esquerda? Sabemos que os partidos políticos têm suas próprias dinâmicas locais em cada município, mas como você descreveria sua relação com as organizações de esquerda em Pesqueira? Por que a escolha pelo Republicanos e não por um partido do campo progressista?

CMX: Fui muito questionado devido ao partido pelo qual ingressei na disputa, o Republicanos. As pessoas estranham, porque conhecem minha trajetória. Mas estamos tratando de uma cidade do interior pernambucano, dominada pelas oligarquias políticas, os mesmos que invadiam as terras Xukurus. Isso foi uma dificuldade para ingressar em partidos, eles fizeram de tudo para impedir minha candidatura logo no início.

Caminhei sozinho por meses, ao lado apenas dos dois vereadores Xukurus. Aos poucos fomos conquistando espaço, a candidatura foi ganhando musculatura e a relação com as forças políticas foi mudando. O Partido dos Trabalhadores (PT) por exemplo só aderiu à nossa candidatura às vésperas da convenção [a coligação, além de Republicanos e PT, teve o PTB e o PL]. E o apoio do PT levou o presidente municipal do PT a deixar a presidência.

Depois começamos a dialogar com os sindicatos, conquistamos a adesão dessas pessoas. Mas é importante entender que na disputa municipal as relações políticas têm muito de “comadre e compadre”, são muito contaminadas pelas relações interpessoais, o que dificulta numa localidade dominada por oligarquias. Mas o nosso projeto foi discutido com a sociedade pesqueirense, com todos os segmentos.

Queremos implantar um modelo de participação da sociedade na gestão, fortalecendo os conselhos que já existem e criando novos conselhos para ampliar essa participação. E não houve pressões do partido contra nada nesse sentido. Isso nos dá tranquilidade de que poderemos lutar para mudar conceitos dentro do partido também. É um partido que tem uma postura volátil a nível nacional. Mas a minha liderança e minha compreensão sobre a gestão não muda, em que partido eu estiver.

BdF PE: Que mecanismos de participação social você pretende implementar como prefeito?

CMX: A primeira coisa é a criação de um espaço de diálogo, a nível de conselho, com a sociedade civil organizada. Queremos a participação da população na construção e acompanhamento das políticas públicas municipais. Queremos essa participação também na deliberação de algumas políticas. Em paralelo, teremos comitês circulando nos bairros, deliberando sobre o orçamento, o povo do bairro decidindo os destinos e prioridades dos recursos. Estamos chamando esse modelo de Orçamento Participativo. Além disso, uma prestação de contas rigorosa. Queremos abrir a “caixa-preta” da prefeitura. Temos quase um mês de gestão e temos informação de muitas irregularidades que a sociedade pesqueirense precisa tomar conhecimento. E só temos condições de fazer isso com transparência e envolvendo o povo na gestão.

BdF PE: Você pertence a uma população que historicamente sofre preconceitos. Você considera que foi alvo de alguma forma de discriminação durante a campanha?

CMX: Houve vários ataques, foi uma campanha extremamente violenta. Ataques pessoais e muitas fake news, com ferramentas de disparo em massa por Whats App, com números de fora do país. O jurídico da campanha acionou a Justiça em muitos desses casos e as pessoas terão que responder pelas injúrias. Houve muitos ataques nas redes sociais por eu ser indígena, alegando que Pesqueira viraria uma grande aldeia, coisas do tipo. Como se indígena não tivesse capacidade e tivesse que estar no mato.

BdF PE: Marcos, será que você poderia descrever os acontecimentos daquele ano de 2003 que levaram a essa condenação por incêndio?

CMX: Eu não cometi esse crime, mas fui condenado. Sabemos que houve por parte da Justiça, à época, todo um processo de criminalização contra os indígenas. Respondi o processo, fui condenado. No dia 7 de fevereiro de 2003 sofri um atentado em que morreram dois jovens que estavam comigo. Aquilo desencadeou uma revolta no Povo Xukuru, por saber seu líder havia sofrido um atentado – muitos nem sabiam onde eu estava, havia um boato de que eu havia sido sequestrado – e o desespero diante dos dois jovens mortos a tiros.

Isso gerou uma revolta popular, uma reação imediata. E havia a identificação de algumas pessoas que estavam envolvidas naquele ataque. O povo definiu como punição expulsar imediatamente alguns membros da comunidade envolvidos nesse evento, mas também houve queima de casas, carros dessas pessoas envolvidas no ataque. As lideranças Xukurus não conseguiram segurar a revolta da comunidade diante dos graves fatos ocorridos.

Foi instalado um inquérito policial para apurar as mortes, mas muito mais para apurar os danos materiais e a expulsão dos coautores do atentado. Foram quase 50 pessoas indiciadas, das quais 35 condenadas – inclusive eu. Fui condenado por um crime que não cometi. Após sofrer o atentado, fui para o hospital, fui medicado e em seguida para a casa da minha mãe. Só quando acordei soube dos acontecimentos em Cimbres.

O caso ganhou repercussão nacional. Nos dias seguintes vieram de Brasília (DF) autoridades a mando do presidente Lula, que tinha acabado de assumir a presidência. Veio uma comitiva composta por um representante do Ministério da Justiça, um da Funai, o próprio Ministro de Direitos Humanos, a subprocuradora da República, deputados federais. Todos fizeram uma visita in loco. Isso tudo está registrado.

BdF PE: E quais as próximas etapas jurídicas na sua tentativa de assumir a Prefeitura de Pesqueira?

CMX: São duas questões. Estamos aguardando que se coloque em pauta novamente no TSE o processo ainda a ser julgado [se o crime de incêndio está enquadrado na Lei da Ficha Limpa]. Mas nossos advogados entraram com ação no STF em virtude da decisão do ministro Kaio Nunes Marques em relação a uma liminar do PDT, que questiona o tempo de inelegibilidade [da Lei da Ficha Limpa, se é de oito anos após condenação em segunda instância ou se a inelegibilidade é de oito anos após o cumprimento da pena]. Nossos advogados pediram para que a liminar fosse analisada.

Estamos aguardando o julgamento da liminar no STF que será agora em fevereiro. Ainda não há data exata. Espero que tenhamos condições de resolver de uma vez por toda essa situação que Pesqueira tem enfrentado. Quem perde com isso é o povo pesqueirense, que fica nessa incerteza. Até porque não aconteceu nada de transição no fim da gestão passada. Entramos na gestão totalmente às escuras. A equipe está trabalhando com muita dificuldade para obter as informações das secretarias e da administração pública para tocar as coisas. Ainda estamos fazendo a transição, trocando o pneu com o carro em movimento.

A população está no aguardo, já que ela que me elegeu. E eu também estou ansioso, porque é muito difícil você ganhar as eleições e não poder assumir. Querer colocar em prática os projetos discutidos com o povo. Hoje eu não posso sequer circular no prédio da prefeitura. O Ministério Público do município fez uma visita surpresa à prefeitura porque recebeu uma denúncia de que eu estaria despachando no lugar do prefeito, simplesmente por eu estar transitando na prefeitura a convite do prefeito-interino. Por causa disso foi aberto um inquérito civil-público para apurar se eu estava despachando enquanto prefeito. Estou muito tranquilo de que não fiz absolutamente nada que venha a atrapalhar a administração pública.

Edição: Vanessa Gonzaga