Pernambuco

POVOS INDÍGENAS

Conheça os Fulni-ô, povo indígena que habita o município de Águas Belas

Confira a primeira de uma série de entrevistas especiais com povos indígenas de Pernambuco

Brasil de Fato | Petrolina (PE) |
O indígena Fulni-ô e antropólogo, Wilke Torres, partilha sobre quais lutas têm sido travadas na atualidade pelo seu povo - Foto: Tiago Miotto/Cimi

Você conhece os povos indígenas existentes em Pernambuco? Apesar dessa não ser uma pergunta de resposta simples e rápida, as edições do programa Prosa e Fato do mês de fevereiro se dedicam a conhecer e apresentar alguns desses povos que historicamente lutam, resistem e persistem pela manutenção de seu povo, terras e tradição no estado. 

Para dar início a série especial, o primeiro convidado representa a etnia Fulni-ô: Wilke Torres de Melo. Ele é indígena Fulni-ô e antropólogo do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Pernambuco e compartilha um pouco sobre as tradições dos Fulni-ô, como se deu o enfrentamento à pandemia e quais são seus principais desafios atuais. 

Confira os principais tópicos da entrevista:

Ocupação do território de Águas Belas 

Os Fulni-ô formam um grupo indígena que habita próximo ao rio Ipanema, no município de Águas Belas. Não se tem notícias do ano em que foram aldeados. O certo é que, em meados do século XVIII, já eram designados pelo nome de "Carnijós". É possível que, nesta aldeia, tenham se fundido elementos provenientes de vários grupos étnicos, que mais tarde se reorganizaram e adotaram então o nome do grupo anfitrião: Fulni-ô, que tem como tradução “povo da beira do rio”. 

Atualmente, o maior desafio é a luta pelo território, conta Wilke Torres. Ele explica que a relação com Águas Belas é próxima e emblemática. "Na medida em que o município cresce sobre as terras do território e isso repercute em problemas para a organização e o projeto do povo, existe também fulni-ô que se apropria desse espaço e dessa relação". Na cidade, indígenas também são proprietários de lotes e arrendamentos, e Wilke analisa isso como estratégia de sobrevivência econômica. 

Preservação da língua nativa

Junto com os indígenas do Maranhão e dos Pataxós do sul da Bahia, os Fulni-ô são tidos como parte dos únicos povos indígenas que conseguiram preservar o idioma nativo, conhecido como a língua yatê (ou ia-tê). Wilke afirma ver a preservação da língua nativa com otimismo e não enxergar risco de extinção. 

"Os processos de aprendizagem se dão por várias vias: pela via doméstica; o processo de vivência da vida social e ritual vivenciada nas aldeias religiosas de Ouricuri; e um processo mais recente, que também é muito importante, é a instrumentalização da língua ia-tê pelas escolas indígenas”, explica o antropólogo. 

O ia-tê desempenha um papel fundamental nos rituais das aldeias do Ouricuri, que são iniciados nas últimas semanas do mês de agosto. A língua é a preferencialmente falada durante as quatorze semanas de duração, sendo uma oportunidade para os membros mais jovens serem socializados no ensino de um código simbólico diferente. “A instituição ritual certamente é o instrumento mais forte de continuidade da língua ia-tê, por conta da explicação da vida material e ritual a partir da visão de mundo Fulni-ô”, complementa. 

Existe muito mais para além do "Toré"


Anualmente, o povo Fulni-ô participa do "Ouricurí", ritual sagrado. As famílias fazem uma mudança para a aldeia que recebe o mesmo nome do ritual e é destinada apenas às atividades religiosas. / Foto: Divulgação

Criou-se, ao longo do tempo, uma imagem bastante estereotipada dos povos indígenas. Não somente em relação às vestimentas e indumentárias, mas também uma padronização cultural, como acontece com o Toré. O Toré ficou conhecido como o ritual presente nas manifestações culturais de diversos povos indígenas que vivem no Nordeste. No entanto, Wilke explica que ao englobar todas essas manifestações com o termo "Toré", muita coisa se perde. 

Ele explica que o Toré surgiu a partir do início do século passado, quando o Estado começou a reconhecer os povos indígenas do Nordeste. Nesse processo, foi feito um levantamento das evidências culturais que pudessem justificar o reconhecimento dessas identidades. 

 “Quando o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) chegou ao povo Fulni-ô, chamaram um ritual específico de Toré. Foi um ritual que os Fulni-ô elegeram para se comunicar com os agentes e com as instituições de Estado. Depois se popularizou e começou-se a chamar grande parte das manifestações culturais dos povos indígenas de Toré”, relembra. 

No entanto, Wilke reforça que existe um campo muito mais rico, dinâmico e complexo da vida religiosa, simbólica e ritualística dos povos indígenas. Ele cita, por exemplo, a dança da Furna e os ritos sagrados vividos dentro do espaço das aldeias religiosas dos Ouricuris, que estabelecem uma relação de ancestralidade do povo. Ele pontua, ainda, que existem rituais que não são apresentados ao grande público. "Compreendo isso como parte do processo de resistência daquele povo", afirma. 

Enfrentamento dos Fulni-ô durante a pandemia


Durante o isolamento da pandemia, os indígenas ficaram impedidos de vender seus trabalhos de artesanato. Em parceria com sindicatos, o povo Fulni-ô criou vaquinha para auxiliar a população / Foto: Divulgação

De acordo com o boletim da Rede de Monitoramento de Direitos Indígenas em Pernambuco (REMDIPE) de 2020, Pernambuco foi o estado do Nordeste com maior número de mortes por covid-19, sendo os Fulni-ô os mais atingidos. Wilke conta como foi vivenciar esse período da pandemia. 

"A gente pode dizer que foi muito desafiante fazer o enfrentamento da pandemia e que os povos foram muito fortes. São povos indígenas que no seu processo histórico estão acostumados a enfrentar diferentes ciclos epidêmicos, pandêmicos".  Ele cita o enfrentamento à cólera, à febre tifóide e uma série de outros grandes contágios. Segundo ele, uma das explicações para a pandemia é o desequilíbrio com o universo, e que, portanto, era preciso consertar essas relações para enfrentar o vírus. A forma de se fazer isso, para os indígenas, é através de suas lógicas culturais, de sua medicina tradicional e a espiritualidade. 

Mas não somente, o trabalho das instituições do Estado também foi importante, na medida em que a força de trabalho dentro da atuação da Atenção Básica à Saúde foi composta, majoritariamente, por profissionais indígenas. "Na aldeia Fulni-ô, as nossas equipes são compostas, na sua maioria, por profissionais indígenas. Foram eles que fizeram esse enfrentamento”, conta. 

Com isso, Wilke acredita que conseguiram contornar a situação da maneira possível. "Tínhamos receio que fosse uma situação muito mais grave, de ter um número muito maior de perdas”. 

O desafio de reunir novamente o povo Fulni-ô 

Para além dos problemas causados pela pandemia, o indígena e antropólogo classifica o principal desafio dos Fulni-ô atualmente. Segundo ele, os indígenas Fulni-ô vivem um processo de divisão interna, causado pela disputa de campos dos direitos indígenas com esferas do Estado. "Hoje, talvez nosso maior desafio seja unir o povo novamente, reunir nossas lideranças, os caciques, pajés, detentores de conhecimento tradicional, pessoas que vivem na tradição na indígena, em torno de um projeto comum", pontua. 

Para ele, o povo Fulni-ô têm sofrido muitos projetos de interferências que provocaram fraturas na sua organização interna. Sendo assim, o desafio é retomar uma união em torno de um projeto de bem viver, de respeito à Caatinga, aos seus ancestrais e sua espiritualidade, seguindo os ensinamentos passados pelas gerações passadas. 

 

Edição: Vanessa Gonzaga