No dia 02 de junho de 2020, o Brasil registrava 1.262 mortes pela covid-19. Era o auge da pandemia do coronavírus no Brasil e no meio desse caos que estava instaurado, uma mulher, negra e trabalhadora doméstica perdia seu filho de 05 anos. Essa é a história de Miguel Otávio, filho de Mirtes Renata, que caiu do 9º andar de um prédio de luxo no centro do Recife.
Mais de um ano se passou e a luta de Mirtes por justiça permanece sem resposta. A acusada do crime é Sarí Corte Real, sua ex-patroa e a pessoa que colocou Miguel sozinho no elevador e apertou o botão do andar da cobertura, local de onde Miguel caiu. Em entrevista exclusiva para o Brasil de Fato Pernambuco, Mirtes falou sobre a relação entre o trabalho doméstico e a herança escravocrata no Brasil, do cuidado com a vida das crianças negras e denunciou irregularidades na condução do processo. Confira os principais trechos da entrevista:
Culpabilização da vítima
De acordo com Mirtes, a defesa de Sarí Corte Real está tentando responsabilizar o menino Miguel pela sua própria morte. “É uma estratégia muito baixa que eles estão utilizando de culpar meu filho pela própria morte, ainda mais questionando a educação que eu e minha mãe dávamos a Miguel, dizendo que que ele era muito traquina, mas Miguel era apenas uma criança saudável, e como qualquer criança, brinca, sorri, tem seus momentos de rebeldia, isso é normal. Ele era uma criança de 05 anos e que tinha muita vida pela frente, muitas coisas para viver”, lamenta.
Ela rebate o argumento: “Eles querem desviar a culpa de Sarí, mas mesmo se eu e minha mãe fôssemos péssimas mãe e avó, mesmo se Miguel fosse aquela criança "impossível", não justifica o que ela fez. Se eu e minha mãe éramos péssimas, porque ela confiava os filhos dela a nós? Ela viajava e deixava os filhos com a gente... Porque ela confiava e deixava?”
Repercussão internacional
O caso teve repercussão internacional e foi citado como exemplo de racismo sistêmico na pandemia em relatório de grupo da ONU, virou a música “2 de junho” na voz de Maria Bethânia e Adriana Calcanhoto e vem rendendo uma série de manifestações organizadas pelo movimento negro em Pernambuco.
Para Mirtes, “Essa repercussão se deu mais pela questão de ser um um corpo negro sendo tombado por conta do racismo. Eu perdi meu filho para o racismo. Eu pensei em um certo momento, quando eu peguei covid-19, ele e também minha mãe, que eu ia embora e ia perder minha mãe e meu filho porque estava vendo tantas pessoas indo embora, sabe? Então eu não perdi meu filho pra essa pandemia, mas perder meu filho pro racismo, pra mim foi algo muito pior” aponta.
Vidas interrompidas
O racismo fixa estereótipos sobre crianças negras que impedem que elas recebam o mesmo cuidado que as brancas. É o que afirma a mãe de Miguel, que propõe medidas de superação deste quadro “Primeiramente a sociedade tem que respeitar o povo negro e consequentemente isso vai gerar mais cuidado com nossas crianças negras. Temos uma sociedade racista que taxa as crianças negras como crianças fortes, espertas, que sabem se virar sozinhas e não precisam de carinho. As crianças negras merecem proteção, cuidado e carinho da mesma forma com que as crianças brancas são tratadas”.
Ela também reflete que a morte de crianças negras no Brasil, apesar de recorrente, está cercada de impunidade “Uma da nossas frases é ‘Justiça por Miguel e pela vida das nossas crianças negras’ e assim a gente vem lutando pra que o caso dessas crianças seja tratado com respeito dentro do judiciário. Emily, Rebeca, Ágata, João Pedro e várias outras crianças e adolescentes negros morreram e o caso ainda está na justiça rolando. Eu disse desde o começo que eu ia mover céus e terras pra que o Caso Miguel não fosse esquecido e fosse solucionado. Esses pais e mães devem fazer a mesma coisa”, incentiva.
Trabalho doméstico e racismo
Questionada se já visualizava a herança racista no trabalho doméstico, Mirtes, que agora é estudante de Direito, afirma que esse conhecimento só veio após a morte do filho “Depois de tudo isso que aconteceu eu fui estudando, fui obtendo conhecimento e tive noção de que tudo o que aconteceu comigo, minha mãe com meu filho foi racismo. O racismo está tão entranhado dentro da sociedade que às vezes a gente não percebe isso. Nós, mulheres negras, somos a maioria no trabalho doméstico e a empregada doméstica passa por situações muito difíceis. Eu peguei covid-19 e mesmo doente eu estava trabalhando. Não me liberaram pra ficar em casa, nem eu, nem minha mãe e nem meu filho”, afirma.
Ela ressalta que essa foi uma realidade recorrente na vida das trabalhadoras da categoria “Isso não aconteceu só comigo, mas com muitas empregadas domésticas nesse período da pandemia, não só ali nas ‘Torres Gêmeas’ [como são conhecidos os edifícios Píer Maurício de Nassau e Píer Duarte Coelho] aqui em Recife, muitas mulheres tiveram que ficar em cárcere privado, deixaram de ir pra suas casas ficar com sua família pra estar trabalhando, aconteceu com várias mulheres”.
Para Mirtes, o trabalho doméstico nos moldes brasileiros é uma forma moderna da escravidão “A maioria das empregadas domésticas é negra e muitas não tem esse entendimento do racismo que elas vêm sofrendo, porque hoje a gente está vivendo uma escravidão moderna. A diferença é que a casa grande é o apartamento e a senzala é o quarto do empregada”.
Irregularidades no processo
O caso esteve até o mês de setembro em fase de instrução. Agora, Mirtes aguarda as alegações finais e emissão da sentença “Pelo fato do Caso Miguel ter se tornado um caso emblemático, já era pra ter sido solucionado. Infelizmente o judiciário pernambucano anda a passos de tartaruga. Em setembro foi finalizada a fase de instrução, que começou em dezembro de 2020. Vem acontecendo irregularidades. Os advogados de Sarí deram um endereço falso. Eles colocaram duas testemunhas do interior, o Oficial de Justiça foi várias vezes lá e não encontrava testemunha”.
A mãe de Miguel afirma que sua defesa não esteve em momentos que podem ter sido cruciais no processo “A outra testemunha foi ouvida sem o conhecimento dos meus advogados. A coleta do depoimento dela foi feito de forma sigilosa. Só quem participou foram os advogados da ré e o representante do Ministério Público, que nem estava a par da situação e não fez perguntas estratégicas para aquela testemunha. Isso o que aconteceu vai contra a jurisprudência. Isso gera anulação. A gente pediu, mas isso foi negado. Depois de meses. O juiz não anulou dizendo que o depoimento dessa pessoa não ia dar prejuízo ao processo”.
Ela também diz que as expectativas são de que o caso siga em outras instâncias, já que há a possibilidade de recurso “Agora, estamos esperando as alegações finais para que o juiz dê a sentença, apesar de eu ter consciência de que isso não vai acabar agora, porque independente da sentença cabe recurso pra ambas as partes”, finaliza.
Edição: Vanessa Gonzaga